Os impactos da cultura da pegação no nosso prazer e bem-estar - Mina
 
Seus Relacionamentos / Reportagem

Estamos exaustas: como a cultura da pegação afeta o nosso prazer e bem-estar

A liberdade sexual tem as suas delícias, mas também as suas dores. Será que é possível construir relações sem compromisso com mais afeto?

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“Hookup culture”  ou, em bom português, “cultura da pegação” é um termo que começou a ser usado nos anos 2000 para denominar nosso famoso “pega e não se apega”,  “uma noite e nada mais”,  “rolo” e tantos outros termos que rotulam essas relações sem rótulos. A promessa dourada do novo “não formato” de relação era: liberdade para experimentar, ampliação de repertório e de parceiros, possibilidade de seguir o próprio desejo. Mas será que ter mais possibilidades tem sempre como consequência mais prazer e mais felicidade? Parece que não. 

A busca por ser vista como uma mulher sexy deixa de lado a conexão com o próprio desejo 

Erin Miller, especialista em relacionamentos, compartilha em seu TED talk dados que apontam o crescimento de quadros de depressão, ansiedade, sensação de solidão e diminuição de autoestima como efeitos colaterais dessa ditadura da liberdade. Esses traços se mostram ainda mais acentuados entre adolescentes e jovens adultas que, no início de sua vida sexual, se veem pressionadas a serem casuais para pertencer. Isso faz com que a vontade delas seja, antes de mais nada, a de ser desejada pelo outro ou de ser vista como uma mulher moderna e descolada. 

Nessa jornada de construção da tal mulher desconstruída, desconstrói-se a conexão com o próprio desejo e limites. É aqui que a sociedade da performance e do espetáculo também traz obstáculos para os encontros reais. A busca por ser vista como uma mulher sexy e “boa de cama” (seja lá o que isso signifique) faz com que, mais uma vez,  a mulher tire a roupa, mas se vista com um ideal de eu transante. Ao querer acertar, não há encontro possível com o próprio sentir. 

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Livres ou medrosas?

Outro comportamento comum que gera a adoção da prática do casual de maneira perigosa é a insegurança e o “heteropessimismo“. A educadora Beth Grampero. da Universidade de Boston, aponta que muitas mulheres topam relações causais porque sentem que é isso ou nada. Nessa lógica,  o casual se torna um sistema de defesa e não de aventura, como comenta a terapeuta sexual Ana Canosa: “Como as pessoas estão com medo de serem abandonadas, elas já refreiam o processo muito antes. Por mais que muitas queiram encontrar alguém que lhes aceite como são, que lhes acolham e a quem elas possam proteger… São tantas sequências de ficadas e ghostings que muita mulher tem achado melhor já nem esperar nada pra não se machucar, mas se machucam mesmo assim”. 

“Existe um sentimento de culpa, de fracasso, de ter sido vulnerável e frágil demais”

Segundo a terapeuta, as pesquisas que avaliam impacto psicológico do sexo sem compromisso apontam para a necessidade das pessoas o realizarem de maneira autônoma. “É importante que toda mulher se pergunte: eu quero, eu desejo, estou com vontade? Ou estou fazendo isso só para ser amada, parecer descolada, tentar passar para a próxima fase?”.  Assim como não faz sentido fazer para agradar, também precisamos desconstruir o fazer para aproximar. Sexo não pode ser moeda de troca de intimidade.  Mas, infelizmente, muitas de nós ainda nos sentimos usadas e traídas simplesmente por que a relação não seguiu. 

“Não me surpreendem as mudanças nos formatos das relações e, sim, as não mudanças emocionais: o quanto ainda convivemos com travas e crenças tradicionais que dificultam o aspecto da exploração e da liberdade física e sexual”, aponta Ligia Baruch, psicóloga e autora de Tinderelas, o amor na era digital.Apesar de as mulheres terem comportamentos novos, a crença sobre o comportamento não mudou. Existe um sentimento de culpa, de fracasso, de ter sido vulnerável e frágil demais. Isso está ligado a um dilema de gênero”. 

Ela destaca que, para muitas mulheres, o foco na construção do romance, do casamento e dos filhos ainda ganha protagonismo quando comparado ao desejo do agora. Não por acaso, em suas pesquisas para o livro, o perfil de mulheres mais abertas para relações casuais era exatamente daquelas que já tinham completado o checklist do “jogo da vida da mulher feliz no amor”. “Mulheres que já passaram pelo casamento, já tiveram filhos e que têm autonomia financeira são mais abertas ao casual e tendem a tirar maior prazer desse tipo de relação. Isso porque sentem que viveram o script tradicional e já têm resolvida essa questão da maternidade, que é um grande fator de ansiedade”, pontua.

Outro fator chave para que as relações causais sejam prazerosas é a diversificação das fontes de afeto. Na pesquisa, Ligia percebeu que mulheres que tem uma vida afetiva enriquecida como um todo – grupos de amigas interessantes, vida social e cultural ativa, viagens frequentes e investimento em conhecimento e autodesenvolvimento – tendem a se dar melhor na cultura do casual. Isso porque elas param de esperar que o grande amor venha do parceiro e entendem que podem se alimentar de amores sólidos em outras fontes.

De nada adianta batalharmos por corpos livres se não tivermos corações e mentes livres

Liberdade sexual sem liberdade emocional

O fato é que o casual ainda é pautado por um jogo masculino, que dá pouco espaço pra mulher, para o sentir, para o subjetivo. “Só o consentimento sexual não está dando conta de décadas e décadas de desigualdade de gênero”, comenta Ana Canosa. “O sexo sem compromisso ainda carrega essa construção social pautada na masculinidade tóxica que objetifica a mulher e seu corpo na cama e promove uma lógica descartável.. Infelizmente os homens héteros ainda têm dificuldade de serem claros, honestos e terem responsabilidade afetiva… Esse descartar das parceiras faz com que o prazer físico não justifique o baque psicológico”. 

Hoje o desafio feminino não é fazer o primeiro passo, é dar o segundo, o terceiro, fazer um carinho e um cafuné sem ficar angustiada por parecer emocionada. De nada adianta batalharmos por corpos livres se não tivermos corações e mentes livres.

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A onda do casual com afeto

Pesquisas apontam que a tal cultura do casual pode estar perdendo seu brilho nesse cenário pós-pandêmico. O número de solteiros que estão em busca de um relacionamento sério dobrou, segundo um estudo  do canal Amores Possíveis – de 37% antes da pandemia para 63% ). Além disso, a vontade de respeitar mais os próprios sentimentos e os do outro parece dar a tônica da nova solteirice: 54% dos entrevistados dizem que pretendem demonstrar mais carinho e afeto. Também tem mais gente buscando encontros que garantam mais conexão e menos superficialidade, como programas culturais, sem o consumo de álcool e menos gasto com dinheiro. 

Como sugestão para um novo protocolo temos “diálogo, intimidade e vulnerabilidade sem moderação”. Mais do que entender se aquela relação é só casual ou não, vale se reconectar com seus desejos, com o outro e se propor uma jornada de presença e troca. Refazer os laços de afeto, mesmo que no casual, pode fazer com que a gente se reconecte no sexo, nos encontros e no prazer. E ai… Que seja eterno enquanto dure.

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