Como serão as cidades do futuro - Mina
 
Nosso Mundo / Reportagem

Pernas pra que te quero: nas cidades do futuro, vamos caminhar mais e melhor

A aposta na caminhabilidade e nas cidades ativas é a grande tendência do planejamento urbano, cada vez mais focado no bem-estar

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Poucas coisas marcaram tanto os millennials quanto as imagens de supostas cidades do futuro altamente tecnológicas, onde carros voadores dividem o espaço aéreo com pessoas em mochilas a jato, flanando pra lá e pra cá. Nessas cidades, portanto, a gente nem sequer caminharia. Como esquecer do skate a jato de De volta para o futuro? Podemos até ter robôs limpando casas, chamadas de vídeo na palma da mão, smartwatches e televisões de tela plana. No entanto, quando o assunto é transporte, as ideias ampliadas no imaginário coletivo por produções como Os Jetsons ou Blade Runner provavelmente não são um futuro inevitável e tampouco desejável para nós enquanto sociedade. 

Nas cidades do futuro, a experiência do caminhar será central na vida das pessoas 

Muito pelo contrário, pode ser (e torcemos para isso!) que a forma de circular pelas cidades no futuro seja, na verdade, mais parecida com os filmes baseados na obra de Jane Austen, que se passam no século 19. Isso porque as cidades do futuro são aquelas onde a experiência de caminhar é central na vida das pessoas, aponta estudo publicado no final do ano passado na revista Cities & Health

“No Brasil, cerca de 40% dos deslocamentos urbanos são feitos a pé, ainda que nem sempre por desejo, mas por necessidade, essa segue sendo uma tendência mundial que precisa ser olhada com atenção. Precisamos entender que o desenho das cidades pode ter impactos tanto positivos quanto negativos na saúde mental e física das pessoas”, explica Danielle Hoppe, gerente de mobilidade ativa do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil). “Para melhorar, precisamos abandonar as noções das cidades projetadas que são muito utópicas, onde o corpo está sempre desconectado da cidade. Essa utopia sequer nos serve, porque ela está completamente desconectada de nossa própria biologia”, complementa.

Segundo Letícia Sabino, mestra em estudos urbanos pela University College London e fundadora e diretora da ONG SampaPé!, para a gente viver bem nas cidades é inevitável apostar na caminhabilidade. “A gente costuma dizer que o caminhar é o presente e a caminhabilidade é o futuro, porque já caminhamos todos no presente. Já é o principal modo de deslocamento nas cidades da América Latina”, afirma. Segundo ela, esse número é mais expressivo ainda quando falamos de mulheres, crianças e adolescentes, já que esse é o principal modo de presença e deslocamento no espaço público. “Não precisamos mudar um hábito da população ou construir novas possibilidades. O que precisamos é de cidades que acolham o que já acontece de maneira justa, digna e divertida. Essa é a base das cidades do futuro e não tem como escapar disso”. 

O estudo publicado na Cities & Health não só chama atenção para essa tendência das cidades do futuro serem as cidades caminháveis, mas vai ainda além ao evidenciar que a diversão deve ser parte fundamental do planejamento. Segundo constata a pesquisadora Ana Boldina, do Departamento de Arquitetura da Universidade de Cambridge, responsável pela pesquisa, além da correlação direta entre cidades planejadas para serem mais ativas e a melhoria do bem-estar (físico e emocional) geral da sua população, precisamos atentar para a importância de transformar nossas monótonas e tediosas cidades em lugares mais criativos, divertidos e lúdicos. 


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A metodologia empregada no estudo foi relativamente simples. As pessoas deveriam olhar uma série de fotografias e indicar qual trajeto apresentado nas imagens prefeririam fazer para se locomover. 78% entrevistados optaram “por trajetos mais lúdicos e interessantes, com obstáculos como vigas de equilíbrio, trampolins e degraus altos”. Mas calma, não estamos falando aqui dos desafios das ruas esburacadas e com esgoto à céu aberto tão comuns no Brasil (e que mais se assemelham a um rally urbano). 

Na pesquisa inglesa, as imagens são de espaços públicos com rampas de diferentes formatos e tamanhos, escadas que emitem sons de piano ao serem pisadas, diferentes cores nas paredes e no chão, pisos de materiais diversos e até terra. Lembra dos trampolins e dos pneus coloridos das aulas de educação física? Eles também estão presentes. Nesses espaços, ainda há sinalização convidando para experimentação sensorial e ao relaxamento, muitas áreas verdes diversas, zonas arborizadas e jardins de flores. 

As modificações na paisagem urbana podem levar os pedestres a exercícios físicos durante sua rotina 

Imagina se o trajeto para o trabalho ou para o mercado fosse uma forma de exercício físico agradável? É exatamente essa a intenção de Ana Boldina: mostrar que as modificações na paisagem urbana podem levar os pedestres a atividades seguras, acessíveis e motivadas de maneira orgânica durante o deslocamento, beneficiando a todos – principalmente às pessoas com tendências sedentárias.

Para entender a proposta da pesquisa, é preciso considerar também ruas como locais onde a gente possa parar, sentar para conversar ou se divertir. “Pensar em uma cidade onde o corpo e o ambiente estejam conectados não é pensar em uma cidade utópica, mas sim em uma cidade desejada, onde os projetos sejam feitos tendo como base a escala humana em suas dimensões plurais”, afirma Danielle Hoppe. Ao que Letícia Sabino concorda: “Todo mundo deveria poder opinar sobre a cidade em que quer morar, mas construir esses imaginários onde a caminhada é central é muito difícil. A verdade é que as ruas, atualmente, são vistas como um lugar só para carros.”

Cidades que já são do futuro

E para quem ainda não acredita que atrair vida para as ruas é possível, além da melhor projeção futurística que podemos ter, basta observar cidades como Barcelona e Paris. Como muitas grandes cidades do mundo, a capital francesa enfrentava a necessidade de reduzir emissões de carbono e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade de vida da população. A crise da Covid-19 foi o empurrão que faltava para os esforços em saúde pública serem direcionados para o desenho da cidade. Em 2020 a prefeita Anne Hidalgo apostou no plano de transformar Paris em uma “cidade de 15 minutos” – com uma espécie de micro cidades dentro da cidade da luz nas quais os moradores conseguem ter suas atendidas necessidades a uma curta distância (a pé ou em bicicleta) de suas residências. O plano incluiu uma ampla expansão da infraestrutura cicloviária, a construção de parques urbanos e o bloqueio de ruas escolares para o tráfego de veículos. 

Na mesma linha, Barcelona vem (também sob liderança de uma mulher, Ada Colau), desde 2016, apostando em retomar o espaço público para os pedestres com um ousado projeto de  “superquadras” e corredores verdes. Nos bairros onde vem sendo aplicado, os quarteirões são reunidos em grupos de nove para formar apenas um de 400 metros quadrados. O trânsito de automóveis, então, fica reduzido e as ruas internas são substituídas por largas calçadas, ciclovias, espaços de lazer e áreas verdes. O som que impera agora é de crianças brincando e passarinhos. Linhas no chão marcam pistas de corrida, mobiliários coloridos convidam diferentes públicos a explorar seus usos – brincar, pular, sentar ou se apoiar –, mesas de ping pong e jogos riscados dispostos no piso são um convite à permanência e partilha entre vizinhos. Hoje a cidade que tem cerca de setecentas áreas de lazer e uso comunitário para diferentes públicos é o modelo de futuro para o mundo e não à toa têm como slogan “O futuro já é presente”.

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