Como lidar com familiares que apoiam a extrema direita - Mina
 
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Como lidar com familiares cooptados pela extrema direita

Existe caminho para reconstruir as relações familiares devastadas pelas fake news e apoio ao radicalismo político? Nossa colaboradora Júlia Flores conta sobre o racha em sua família e conversa com especialistas sobre como passar por tudo isso

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Era começo de novembro, Lula tinha sido recém-eleito, os acampamentos bolsonaristas ainda nem eram notícia e, no WhatsApp, imagens de familiares prestando continência em frente a quartéis já começavam a lotar minha caixa de entrada – junto das fotos, mensagens de fake news e frases de incitação ao ódio. Fui compelida a sair do grupo da família. Não era a primeira vez. 

Se nas eleições de 2018 romper relações “de sangue” por causa do WhatsApp dava uma sensação de rebeldia e empoderamento, depois de 4 anos o sentimento era só de tristeza mesmo. As coisas não estavam melhorando, o clima não estava mais ameno, as relações não foram reatadas, pelo contrário: “em nome da família e dos bons costumes”, eu tinha sido excluída. E olha que nem no extremo oposto eu estava, mas isso não foi suficiente para evitar que ganhasse o título de comunista esquerdopata: bastou defender o mínimo dos direitos humanos, tomar vacina e acreditar na igualdade social.

“Meu pai é uma pessoa solitária, Bolsonaro aparece como uma figura próxima, um homem ordinário que o escuta e compreende”

Minha família entra nos 30% dos bolsonaristas radicais. E eu entro nos (ainda não sabemos quanto por cento) de filhos órfãos por causa do bolsonarismo. Esse texto não traz respostas fáceis, mas pode ser um alento para quem precisa lidar com familiares extremistas. Para reconstruir essas relações, é preciso esforço, empatia e um tanto de compreensão sobre as dinâmicas de movimentos de massa. Vamos?

Estranhos no ninho

Em 2023, chega a ser cansativo explicar o que é o bolsonarismo e como ele se articula. Porém, tem um detalhe que talvez só esteja aparecendo agora. Para se estabelecer e arrecadar uma legião de seguidores, o bolsonarismo – assim como outros movimentos extremistas – encontra brecha não apenas em questões econômicas e políticas, mas também em crises de origem existenciais.

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As imagens dos acampamentos mostram pessoas – na maioria, desempregados ou aposentados de classe média, brancas e vestidas com a camisa do Brasil – reunidas em prol de um ideal, lutando para salvar o país. São indivíduos, excluídos de atividades importantes ou sem função social, que encontram em um movimento de grupo a identidade e a identificação que muitas vezes nos salva das angústias diárias.

É o mesmo senso de pertencimento que uma religião pode prover. É o mesmo senso que também explica o sucesso do fascismo ou a lógica de funcionamento de seitas, entre outras coisas. O problema é o que vem depois do pertencer, como explica Guilherme Facci, psicanalista e criador do podcast A loucura nossa de cada dia: “Quando a pessoa entra em um movimento de massa, a capacidade de pensar por si só é rebaixada. Ela pode, então, começar a compartilhar de ideais imaginários e delirantes”.

“É o caso de cortar relações quando uma das partes tenta aniquilar a existência da outra”

Na visão do psicanalista, é fácil que, em grupo, pessoas assumam posturas que beiram à neurose. “Tudo o que o neurótico quer é não ter que se responsabilizar por nada, ter alguém pensando por ele, decidindo por ele; ter um líder que fale o que, como e quando fazer. O sujeito sai de si”, pontua Guilherme. Quando chega nesse ponto, é difícil de identificar quem a pessoa é para além do que ela defende.

“Como amar um bolsonarista”

No começo do ano, um amigo me enviou uma coluna escrita por Tati Bernadi para a Revista Piauí, Como amar um pai bolsonarista. No texto, a escritora conta quem é o pai para além de um negacionista de Facebook. “Meu pai é um senhorzinho fofo, que cuida de todos os idosos do bairro, que foi uma excelente figura paterna, esteve presente em toda minha infância e que, apesar de chamar mulheres de vagabundas, sempre apoiou as minhas loucuras de solteira. É difícil de relacionar a figura dele a de um perfil nas redes sociais que fica compartilhando foto de arma, de apoio ao Exército e fake news”, diz Tati em um bate-papo por vídeo chamada três dias depois em que ela tinha publicado outro texto sobre o pai, desta vez para a Folha de S. Paulo.

Agora, por causa das matérias, o clima entre Seu Carlos e a filha está tenso. A realidade é que, para Tati, a tensão não é nova. “É difícil reconstruir um canal de afeto com alguém que defende um ditador”, desabafa. “Meu pai é uma pessoa solitária, um homem ressentido, ferido, magoado por ter perdido o único amor da vida dele que é minha mãe… O Bolsonaro aparece como uma figura próxima a dele, como um amigo que se deu bem, um homem ordinário que chegou longe, que o escuta e compreende”.

Humanizar quem desumaniza 

Ainda que de realidades diferentes, vejo semelhanças entre o pai de Tati e os meus pais, também pessoas simples. Minha mãe nunca terminou o ensino médio, ainda que tenha feito de tudo para que eu me formasse na principal faculdade de jornalismo do país. Meu pai, um homem pacato e humilde nascido em uma cidade com cerca de 50 mil habitantes, na primeira vez que foi visitar a filha em São Paulo, tremeu (literalmente) com o barulho da cidade. Eles não são ricos, não são latifundiários, mas vivem no campo. A única fonte de informação deles (ainda que a filha seja jornalista) é o WhatsApp.

Eles riem das piadas de Bolsonaro como se estivessem rindo de um amigo. O jeito grosseiro, taciturno e bruto do ex-presidente encanta os dois: “homem do bem”, acreditam. Nunca fui capaz de entender como “alguém do bem” é capaz de não defender o bem, de não falar sobre o bem, de fazer o oposto do bem. Mas ai de mim se falar mal do ex-presidente na frente deles!

É preciso, sempre, tentar acessar a outra pessoa através da emoção 

Aliás, a dica de Guilherme Facci para lidar com familiares extremistas é estabelecer limites. “Dizer que daqui pra frente a gente não conversa sobre política, por exemplo”. Acontece que nem sempre esses acordos são respeitados. E o resultado é que desde que os climas se acirraram na política nacional, eu nunca mais passei um natal em casa. 

Para Guilherme, é o caso de cortar relações quando uma das partes tenta “aniquilar” a existência da outra. “Para um filho gay, por exemplo, é muito difícil de manter relações com um pai homofóbico”, exemplifica. “Talvez, em alguns casos, não haja saída”. Já o psicólogo Rossandro Klinjey defende que a chave para reestabelecer as relações com familiares extremistas é a empatia. “É preciso humanizar a pessoa, lembrar de quem ela era antes de tornar radical, lembrar de memórias passadas, de recordações antigas, tentar resgatá-la. Tem gente com quem não dá simplesmente para cortar relações, ela está inscrita no nosso DNA”

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“Sustentar a solidão e o distanciamento é muito doloroso. Na era dos cancelamentos e do maniqueísmo, em que as coisas estão separadas em ‘bem versus mal’, temos que lembrar que relacionamentos humanos exigem esforço – e, ao meu ver, o lado mais racional é que deve levantar a bandeira de paz e buscar a reconciliação”, defende Rossandro.

Amanhã vai ser outro dia?

Rossandro também é otimista quanto ao futuro. “Vai passar. É cansativo viver neste estado de tensão social e a história já nos mostrou que esses movimentos de massa acabam (como o fascismo e o nazismo, por exemplo). É claro que, com a chegada da internet, combater estes grupos ficou ainda mais complexo; agora eles têm um canal direto de comunicação, escolhem o que querem consumir, quando e como, são impactados apenas pelo que acreditam, etc”.

Sobre as fake news, inclusive, Rossandro defende que é preciso sempre tentar acessar a outra pessoa através da emoção. “Já está mais do que provado de que fatos não são suficientes; tente conversar com ela, peça para que te mostre o caminho que a fez chegar aquela informação, pergunte: ‘você pode me contar o porquê de acreditar nisso?’ de forma empática”, ele diz. “O importante é ter empatia”, reforça. No fundo, os órfãos são eles.

Desde novembro do ano passado eu estava sem conversar com minha mãe. Talvez pela derrota, me tornei alvo – dessa vez mais intensamente – de comentários maldosos, de ataques desnecessários e de falas abusivas. Escrevendo esta reportagem, senti falta da voz dela. Liguei e conversamos por mais de uma hora sobre amenidades como se nada tivesse acontecido. Até o momento da publicação deste texto, não recebi nenhuma nova fake news no WhatsApp. Eu sei que é questão de tempo – das coisas inscritas no DNA, herdei a teimosia, o temperamento forte e a resiliência dessa mulher; eu sei que ela não vai desistir cedo. Nem eu. 

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