O brasileiro e, principalmente, a brasileira está há dez anos sem um minuto de sossego. Nesse contexto onde tanta violência captura nossa emoção, como encontrar espaço para o prazer, a alegria e a simples celebração de estar viva? Como acender a libido? Para quem acha que estou exagerando, faço aqui uma pequena cronologia para relembrar: em 2013, minha filha completava um ano quando começou o que se convencionou chamar de “Jornadas de Junho”. Eu, carioca morando em São Paulo, fui com alguns amigos ver de perto o movimento que parecia espontâneo. Convocado pelas redes sociais, teve como fator disparador o aumento das passagens de ônibus, mas acabou sendo o ponto de partida para uma crise política permanente que deixou o país em estado de alerta.
Sem libido não se transa, mas também não se cria e não se come com gosto
Antes mesmo de assimilar que o movimento não era aquilo que parecia, tivemos uma disputa extremamente polarizada entre Aécio Neves e Dilma Roussef (2014), junto com a eleição do Congresso mais conservador da história desde a Ditadura Militar. Em 2016, veio o golpe de Estado disfarçado de impeachment, onde um deputado exaltou um torturador e saiu andando como se não tivesse cometido crime algum. Vimos o assassinato de ativistas de direitos humanos e lideranças de esquerda, o avanço de movimentos fascistas e de extrema direita turbinados por fake news e, finalmente, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 e uma pandemia mortal logo na entrada de 2020 que sepultaram por longos 4 anos nossa energia de viver.
Confesso que, para mim, foi e está sendo difícil. Mesmo com as pequenas alegrias cotidianas e algumas vitórias íntimas, apenas uma espiada na timeline me jogava numa realidade dura demais para que a felicidade tivesse conforto para morar. O sorriso tinha um porém, uma pálpebra tremendo fora de hora, uma raiva e indignação que não davam espaço para nada. Acho que a frase que mais falei para meu marido e meus amigos durante esses anos foi “viu esse absurdo?”. E, mobilizados pelo absurdo, é fácil esquecer o prazer, esse impulso de vida que nos torna mais criativos, tesudos, interessantes. Aquela despreocupação no corpo, no olhar e no gesto, derreteu a cada notícia de TV. Porque um dos superpoderes do fascismo é justamente esse: quem não está capturado pela sua prática, está capturado pelo choque e pela missão de se opor a ele.
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O ressurgimento da libido
Depois do dia 30 de outubro, muitas de nós sentimos um alívio imenso – não por acreditar na perfeição dos anos que vêm, mas pela derrota nas urnas de uma política de morte. E isso trouxe também a esperança de uma desmobilização dos nossos corpos, enrijecidos de tanta porrada. Nossa libido estava espremida entre a sobrevivência e a indignação. A libido na psicanálise não é só uma vontade de transar, mas principalmente uma energia de ação de nossas atividades mais vitais. Sem libido não se transa, mas também não se cria, não se gargalha, não se come com gosto. E essa não é uma energia infinita, devemos escolher muito bem onde investi-la. Com esse pequeno alívio após o sobressalto dos últimos anos, sinto uma boa onda, que me faz acreditar que vou poder usar essa energia com mais liberdade.
Desculpem a indiscrição: derrotar o fascismo é um tesão
A influenciadora Leila Germano capturou com bom humor esse momento, perguntando no twitter se alguém já tinha transado após a vitória do Lula. Além de ser respondida pela futura primeira dama Janja com emojis de olhinhos atentos, muitas pessoas responderam que sim. Já tinham transado, deitado e rolado. Uma amiga me mandou uma mensagem no WhatsApp dizendo-se surpresa: nem uma hora depois do fim da apuração já tinha beijado na boca de um rapaz. E eu fiz a minha parte, beijando e chorando até que lágrimas e saliva fossem uma coisa só. Desculpem a indiscrição: derrotar o fascismo é um tesão.
Acredito que em um futuro próximo ainda veremos, além de nossos direitos, nossa libido atacada novamente pelo horror – são os novos tempos. Mas em uma democracia mais ou menos consolidada, há espaço para que os nossos corpos existam para além da função de sobreviver e produzir. E possam nas brechas, ser também uma grande festa.