Como saber se é a hora de terminar uma amizade? - Mina
 
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Ex-amigo existe: quando é hora de se afastar

Contatinhos vem e vão, mas amigas são sempre. Será? Identificar uma amizade tóxica e encerrar ciclos nocivos pode fazer toda diferença para sua saúde mental

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Sofrer por amor dói, mas você já experimentou o tombo de uma amizade abusiva? Pois é, com toda a licença a Thelma e Louise, nem sempre uma história entre amigos é digna de um roteiro inspirador e, às vezes, botar um ponto final nessa trilha é a única forma de cuidar do seu bem-estar. 

O termo “amizade falsa” tem quase 50 mil buscas mensais no Google

A Mental Health America, ONG que atua em prol da saúde mental nos Estados Unidos, estima que, por lá, 84% das mulheres e 75% dos homens já experienciaram algum nível de amizade tóxica. Para se ter uma ideia do quanto esse problema preocupa, o termo “amizade falsa” tem quase 50 mil buscas mensais no Google, segundo a plataforma Semrush, que traz dados sobre pesquisas na internet. É como se, a cada minuto, ao menos uma pessoa recorresse ao grande oráculo da web para descobrir se está ou não sendo enganada pelo best. 

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O medo de uma entrega não recíproca ajuda a explicar esse “confiar desconfiando”. Não é para menos: estudos indicam que uma amizade nociva pode levar muita gente ao fundo do poço, já que o laço entre amigos é um dos vínculos que mais desembocam em provocações, traições e ofensas, como mostra o livro The Psychology of Friendship (A Psicologia da Amizade, em português). A obra também aponta que uma pisada na bola feia pode ser mais dolorosa e imperdoável entre amigos do que em relações de outra natureza. Mas o que explica esses conflitos? E como escapar deles? Mina foi investigar.

Amigo, estou aqui

É por volta dos quatro anos de idade que você se torna íntimo da palavra “amigo”. Na infância média e adolescência, o “melhor amigo” entra no jogo. Ou seja, ainda criança, o indivíduo começa a afunilar seus vínculos, com a vaga noção de que amigo não é tudo igual. Mas entender bem esses limites e diferenças segue como desafio até depois da fase adulta. Não é incomum que pessoas se doem em relações cuja natureza desconhecem. Quer ver? Quem nunca quebrou a cara com uma amiga de infância que não partilhava dos seus valores éticos? Ou se decepcionou com a colega de bar com quem dividia a cerveja, mas não poderia dividir um problema financeiro? É por isso que um dos primeiros passos para evitar uma decepção é enxergar o que estrutura cada uma de suas relações antes de criar expectativas sobre elas. 

Uma característica da amizade saudável é a troca de papéis conforme a necessidade dos pares

O psicanalista Christian Dunker elenca os três tipos mais comuns de amizade. A primeira categoria é a histórica, que contempla seus amigos de infância e adolescência, por exemplo.“Eles guardam pequenas versões de nós. E é para eles que voltamos quando queremos nos lembrar de quem somos”, diz. A segunda é o vínculo contextual específico. Está ligado a um momento, condição ou lugar determinado da sua vida, que pode ser seu trabalho, uma viagem marcante, ou um time de futebol. Esse tipo de amizade nasce do fazer junto, de um objetivo ou cenário comum. 

Já a terceira pode surgir de uma evolução da primeira e da segunda. Dunker a define como proveniente da diferença entre iguais e da igualdade entre diferentes. É um vínculo profundo, pautado na partilha, na aceitação do outro, na atenção e no respeito. Ao definir os quatro tipos de amor na perspectiva cristã, o escritor C. S. Lewis apresenta o storge, uma espécie de afeto familiar natural, emotivo e livre de julgamentos. Para Dunker, o “amigo raiz” da terceira classificação é o que mais se aproxima do laço fraternal descrito pelo romancista. Outra característica dessa amizade saudável é a troca de papéis conforme a necessidade dos pares. Quando um precisa de ombro, o outro cede. E quando esse outro precisar de um abraço, o terá em uma entrega livre e espontânea. Ok, mas e se só uma pessoa se doar? Bom, aí é hora de se preocupar. 

Reagi e botei um cropped

Durante mais de 20 anos, a advogada Fernanda*, de 34 anos, esteve ao lado de Bruna*, 34, sua amiga de adolescência. Elas se conheceram no Ensino Fundamental, fizeram faculdade juntas e tudo indicava que nunca mais se desgrudariam. Acontece que Bruna demandava muita atenção da amiga. “Ela se envolvia com caras abusivos e falava mal de mim para eles. Todos me odiavam. Mas no momento em que ela era ameaçada com faca ou deixada na chuva no meio de uma estrada escura por um namorado, era eu que ela chamava. Pouco depois, voltava com o ex e pedia para eu não me meter na vida dela”, conta Fernanda. 

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Ao mesmo tempo, a amiga nunca estava presente em momentos difíceis para a amiga, que há dois anos enfrentou um câncer. “Ela morava no mesmo prédio que eu e, quando precisei tirar as duas mamas, sequer veio me visitar”, lembra a advogada. Com o tempo, Fernanda foi percebendo que Bruna a tratava mais como mãe do que como amiga. “Isso ficou nítido para mim quando engravidei e não tinha mais tempo de dar o que ela me demandava”, diz. O fim da relação veio depois de uma briga feia, que terminou com palavras duras de ambos os lados. “Foi ali que virei a chave e resolvi me afastar”, conta.

Tudo tem três lados

Pode ser que, diante de uma amizade que lhe faça mal, você tente rotular seu amigo. Quem sabe ele não tenha um transtorno de personalidade, como antissocial ou narcisista? Para a psicóloga Carla de Oliveira Vaz Chiarello, esse tipo de olhar é comum em nossa sociedade, com uma tendência ao cientificismo e um anseio latente de dar nome às coisas de forma racional. Mas a verdade é que as relações não são tão verticais e precisas. 

“Será que ser amigo é entregar tudo que você tem?”

O mais habitual é que uma teia de sintomas de um abusador comece a se fundir com os sintomas de quem sofre o abuso. No fim das contas, a base do problema fica oculta numa cadeia confusa. Quer um exemplo? Imagine um sujeito que, para ser aceito, espera atenção incondicional das pessoas ao redor. Se ele encontra um outro que, para se sentir importante, tem o costume de se doar incondicionalmente, existe aí o risco de que, a longo prazo, se estabeleça uma relação de abuso e dependência. 

Então, Carla orienta a olhar as situações em perspectiva, até para entender os próprios limites e os limites do outro. Não se trata de “passar pano” para um amigo egoísta, mas de sair de cena quando aquela relação alimenta um sintoma seu ou dele e gera sofrimento.”Será que ser amigo é entregar tudo que você tem?”, provoca a psicóloga. 

O problema não sou eu, é você

Carolina*, 30 anos, admite que o afastamento é difícil, mas recompensador. Desde o início da faculdade, há sete anos, ela manteve a amizade com Júlia*, 28 anos, que queria ser o centro das atenções em qualquer contexto. “Os problemas dela eram sempre maiores do que os de todo mundo e a gente tinha que fazer tudo para aliviar seu sofrimento”, conta. Uma vez, Julia telefonou desesperada dizendo que brigou com a mãe e que não tinha para onde ir. Carolina tinha uma reunião importante na faculdade, mas a amiga reforçou que seu caso era urgente e que precisava de ajuda. Preocupada, ela faltou à reunião e correu para a casa. Pasmem: Julia não apareceu, não atendia o telefone e nem respondia mensagens. No dia seguinte, foi como se nada tivesse acontecido. “Quando perguntei o que houve, ela simplesmente sorriu e disse ‘nada, amiga, já me resolvi com minha mãe’”, relembra. 

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Julia sempre dava um jeito de fazer as amigas se sentirem culpadas, usando argumentos como “você não tem a mãe que eu tenho” e “você não sofre o que eu sofro”. Quando iniciou tratamento psicoterápico, Carolina entendeu que não deveria se sentir responsável pela vida da outra. E já que a amiga não tinha disposição para mudar seu comportamento, o jeito foi se afastar aos poucos, negando convites para sair, dizendo não a pedidos abusivos de ajuda e por aí vai. 

A pergunta que não quer calar

Talvez esteja se perguntando: será que eu tenho um amigo tóxico? Mas tão importante quanto essa questão é saber se você, por acaso, não é ou não foi a pessoa abusiva. Conforme lembra a psicóloga Lídia Weber, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), partilhar de uma amizade sólida não passa apenas por escolher um bom amigo, mas também por ser um bom amigo. E aí vale se questionar: você se doa na mesma intensidade com que pede? Escuta na mesma intensidade com que fala? E, por fim, tem disposição para aprender com as diferenças e com o que seu amigo tem a dizer? Vale refletir.

*Nomes foram alterados a pedido das entrevistadas.

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