"Acerta a bola na gorda com força" - Mina
 
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“Acerta a bola na gorda com força”

Foram frases e situações desse tipo que me afastaram dos esportes na adolescência. E sei que não estou sozinha. Essa é a história de como eu virei esse jogo.

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Sou a caçulinha de três meninas. Sabe o que isso significa? Que, quando estava grávida de mim, a minha mãe acreditou que tinha um garotão a caminho. Só que não. Para piorar, os médicos não conseguiram identificar meu sexo pelo ultrassom. Super a minha cara isso (ahhh, meu bem, sou escorpiana e adoro um mistério). Até que, no grande dia – tcharam! – nasce uma garotona pesando aproximadamente 5kg. Surpresa!

Acreditem: fui recebida com um enxoval azul com o tema Rambo – sim, aquele do filme. Conseguiu imaginar a faixa do personagem na cabeça? Pois é. Por outro lado, graças a esse sonho “do filho homem”, acabei tendo mais liberdade que a maioria das minhas amigas e, inclusive, mais do que as minhas irmãs.

Na infância, antes do peso virar uma questão

Eu brinquei de tudo. Participava das gincanas, corria solta e escorregava de bunda nas ladeiras do bairro. Minha mãe, sacoleira, trazia do Paraguai vários brinquedos. Então, eu tinha desde bonecos de ação Max Steel até pares de patins de cores variadas. A programação do sábado à noite era assistir a lutas de boxe com o meu pai. Era pura diversão.

“As brincadeiras deram lugar a caminhadas chatas, dietas restritivas e shakes emagrecedores”

Porém, um belo dia, a adolescência chegou com tudo. Descobri da pior forma que eu era uma menina, gorda, que com nove anos já tinha peito, bunda e menstruava. Foi nesse momento, que minha mãe iniciou uma luta para emagrecer a caçula, o que deixou tudo ainda mais pesado. As brincadeiras deram lugar a caminhadas chatas, dietas restritivas e shakes emagrecedores.

A partir daí, parecia que eu andava sempre com uma placa escrito: “ESSE CORPO É INCOMPATÍVEL COM ESPORTE”. Praticar qualquer atividade com bola era um sofrimento. Na escola, toda vez que eu tentava jogar baleado/queimada, a brincadeira virava acertar a gorda com força. Era horrível.

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Eu tinha vergonha de tudo. De parecer mais gorda na bermuda da educação física, de correr e o peito balançar… A saída foi mascarar as minhas aflições por trás da performance da gorda roqueira engraçada. No ensino médio, fui convidada para jogar futebol e me colocaram logo no gol. No momento em que a bola chegou, ao invés de agarrar ou fazer o bloqueio, me encolhi por medo. Foi a última vez que joguei bola. Até hoje, não consigo fazer nenhum esporte desse tipo, mesmo me dedicando a outros. Sigo tratando isso na terapia.

Na adolescência, Mia (no centro) já era bem maior que as amigas

A minha reconexão com o esporte veio apenas aos 27 anos. Olha que irônico: foi para tentar emagrecer. Mesmo começando com a motivação errada, acabei resgatando essa minha antiga paixão e, agora, são 8 anos dedicados a atividades físicas e à vida saudável. Nesse meio tempo, passei a realizar mentorias com mulheres que me procuram (olha a ironia de novo!) com o objetivo de perder peso. Durante o processo, após escutá-las, explico que esse não pode ser o foco, já que foi esse desejo que fez com que muitas delas se afastassem do esporte. 

“Hoje, qualquer prática esportiva vem acompanhada de prazer, alegria e ludicidade”

Vou citar aqui algumas situações relatadas frequentemente pelas minhas mentoradas que resultaram em um desinteresse total pelas atividades físicas. 

  • O menino pode brincar, mas a menina precisa ajudar a mãe em casa.
  • Na hora de brincar, a menina recebe advertência para não bagunçar o cabelo, não sujar a roupa e nem correr porque está de vestido. Já o menino pode correr e se sujar à vontade, afinal os meninos são sapecas.
  • Na adolescência, a menina precisa comer menos e se exercitar para não virar uma adulta gorda. O menino pode comer livremente para ficar forte.
  • Nas aulas de educação física, meninas fazem atividades entediantes de aeróbico. Os meninos jogam bola livremente e se divertem.
  • Na juventude, a menina entra na academia para emagrecer, já o menino joga bola com os amigos para se divertir.
  • Nos grupos esportivos, a menina é assediada por técnicos e escuta comentários machistas sobre parecer homem. O menino é 100% apoiado.
  • A mãe raramente encontra tempo para fazer esporte ou é julgada por “abandonar” a criança quando sai para se exercitar. Na vida do pai, o futebol é indispensável para não surtar com os desafios da paternidade.
  • Quando vai à academia, a mãe é questionada sobre a sua capacidade maternal e com quem deixou a criança, enquanto o pai é apoiado por ser  alguém que se cuida para o filho.

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Aposto que muita gente se identificou. Pois é. Não é por acaso que o afastamento de muitas mulheres das atividades físicas acontece na adolescência. A Think Olga entrevistou 1.584 mulheres a fim de estudar a relação das brasileiras com o esporte e constatou que o caráter lúdico predomina até os 13 anos através de modalidades coletivas e divertidas. Dos 14 em diante, a diversão perde força e surge uma maior preocupação com a saúde, o bem-estar e a estética.

É por isso que, hoje, na minha vida, qualquer prática esportiva vem acompanhada de uma dose extra de prazer, alegria e ludicidade. Será que você consegue resgatar essa sensação de quando era criança e praticava esportes por puro prazer? Te garanto que precisamos fazer isso.

*Mia Lopes é jornalista, fundadora do Afro Esporte um laboratório de conteúdo sobre atletas negros, empreendedora apaixonada por esporte e vida saudável e produtora de conteúdo no @mialopesmia

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