Com a expectativa de vida da população mundial crescendo, nunca se falou tanto em longevidade – e de cuidados para chegar bem aos 80, 90 ou, quem sabe, aos 100 anos. Mas, infelizmente, nem sempre a expectativa de vida prolongada está associada a uma qualidade de vida satisfatória. O resultado de uma trajetória de excessos, falta de exercício, má alimentação e mau gerenciamento do stress vem contribuindo significativamente para o aumento de casos de demência. Esse conjunto de doenças neurodegenerativas afeta a memória, o pensamento e a capacidade de realizar atividades diárias e de tomar decisões.
O termo, abrangente, engloba a demência vascular, de corpos de Lewy, a demência Frontotemporal, a doença de Parkinson e o Alzheimer, mais comum e que atinge cerca de 70% dos casos.
Nos holofotes
Casos recentes, como o do ator Bruce Willis e da apresentadora americana Wendy Williams, diagnosticados com afasia e demência frontotemporal respectivamente, e os estudos que relacionam a demência com as mudanças cerebrais causadas pela menopausa, assim como o documentário A Memória Infinita (indicado ao Oscar 2024), vêm jogando luz a uma doença que acomete cada vez mais indivíduos no mundo.
Números não param de crescer
Segundo a Organização Mundial de Saúde, cerca de 55 milhões de pessoas em todo o mundo vivem com demência, e esse número tende a dobrar a cada 20 anos. No Brasil, segundo pesquisa da Fapesp, o número já passa de 1,8 milhão entre pessoas com mais de 60 anos e pode chegar a 5,5 milhões até 2050.
Mas há um assunto no qual não se fala muito: a saúde e o bem-estar de quem cuida de pessoas com demência. Quando se tem um familiar com algum tipo da doença, se deparar com alguém de nosso convívio íntimo que, de repente, se torna totalmente estranho e já não é capaz de desempenhar mais suas funções corriqueiras é, por si só, desafiador. Some-se a isso o cuidado intenso e a dificuldade de ter de repetir diversas vezes a mesma frase ou responder às mesmas perguntas, entre outras coisas.
Cada indivíduo é único, com todas as suas histórias. Cada pessoa com demência, também será.
“Em primeiro lugar, deve-se sempre pensar que situações como essas não são propositais. Elas fazem parte da doença”, esclarece Sonia Brucki, Coordenadora do Grupo de Neurologia Cognitiva e do Comportamento HCFM-USP. “Cada indivíduo é único, com todas as suas histórias e experiências, portanto, cada pessoa com demência também será única.”
Sonia também explica que é preciso que todos da família se adaptem às novas situações, promovendo o maior grau de independência possível dessa pessoa, pelo maior tempo. “Também não se deve isolar o paciente: ele pode perfeitamente ir a restaurantes, passeios e ter uma vida social. Na verdade, é muito bom que se mantenha as atividades cotidianas e que ela tenha horários definidos, pois a rotina a deixa mais tranquila”.
Para Ricardo Nitrini, Professor Titular Senior de Neurologia da Faculdade de Medicina da USP, o paciente que tem uma síndrome demencial leve ou mesmo moderada, pode curtir muitas coisas na vida. “Imagine uma pessoa que foi a vida inteira muito inteligente, independente e, de repente, alguém o trata como se ele fosse totalmente desprovido da sua capacidade intelectual?”
Filme, dança e sexo
Ricardo explica que é preciso cuidado, porque, quando você não se adapta a essa nova realidade, cria um problema de comportamento e o doente começa a se agitar e acaba ficando triste. “A pessoa pode exercer as atividades das quais gostava antes, como ver um filme, dançar, fazer sexo. A doença não é o fim do mundo. Mas é preciso acatar as dificuldades e necessidades do paciente e adaptar-se a elas”, continua.
Cuidar e cuidar-se
Os dois profissionais são unânimes em reconhecer o fato de que, obviamente, o cuidador sofre um desgaste físico e emocional nesta função. Então, é imprescindível que se tenha momentos de lazer com os amigos, atividades fora de casa e cuidados com a própria saúde. “É verdade que a vida da pessoa vai ser prejudicada pelos pais que estão com demência. Mas é preciso ter momentos de respiro, senão ela vai começar a culpá-los pela vida que está levando”, explica o Ricardo Nitrini. “Ninguém pode só cuidar o tempo todo. É importante ter uma vida além da doença.”
Estudar, aprender como cuidar e identificar gatilhos é fundamental
A gerontóloga e pedagoga carioca Claudia Alves Silva fez o caminho oposto e, quando sua mãe teve o diagnóstico de Alzheimer, há 13 anos, parou tudo para cuidar exclusivamente dela. E sentiu na pele os desafios de auxiliar uma pessoa com a doença. “O filho cuidador sofre por ver seu pai ou sua mãe mudando, por não entender esse comportamento agressivo. Estudar e aprender como cuidar é fundamental. Eu fui curiosa, investiguei a fundo o porquê de determinadas atitudes e foi assim que comecei a identificar os motivos de algumas reações e consegui evitar os gatilhos que as provocavam”, reflete.
A Demência nas redes sociais
Foi a partir de sua própria pesquisa e vivência que Claudia fundou O Bom doAlzheimer, um canal no Youtube e um perfil no Instagram onde ensina para seus mais de 900 mil seguidores tudo o que aprendeu na prática: como lidar com comportamentos desafiadores e administrar o que está por vir sem surtar e nem adoecer. “Eu tento mostrar que é viável cuidar de forma leve e humanizada”, diz.
Claudia afirma que a maioria das famílias tem pavor da demência que, na verdade, é uma doença que afeta muito mais quem sofre do que quem cuida. “Assim que é feito o diagnóstico, é preciso convocar uma reunião com a família e deixar claro que a doença é uma responsabilidade de todos. É importante contar com uma rede de apoio, para que você consiga delegar e dividir o cuidado. E pedir ajuda, sempre”, aconselha ela, que falou com o Mina Bem-Estar do Uruguai, onde passava férias depois de um longo período de dedicação total.
Quem cuida de uma pessoa acaba sendo transformado. Você exercita paixão, esperança.
Cuidar da própria saúde mental e se fortalecer através da terapia também é, segundo ela, outro fator crucial. “Eu me sobrecarregava muito, mas hoje vejo quefoi por minha própria culpa”, analisa. “No fim, aprendi e criei condições para viver como vivo hoje.”
Apesar de tantos desafios, Claudia afirma que manter a serenidade e o otimismo é uma questão muito individual e que depende de como você enxerga a vida. “É preciso, acima de tudo, estar disposto para cuidar de uma pessoa que tem a doença”, diz ela. E garante: “Quem cuida de uma pessoa que tem algum tipo de demência acaba sendo transformado. Você exercita paixão, esperança”, diz. “Não é utopia, é possível sim”.
Passando dos limites?
No TikTok, a hashtag #Dementia tem mais de 2 bilhões de visualizações. Mas, além dos vídeos inspiradores ou educacionais como os de Claudia, há também muita exposição de pacientes em situações degradantes por seus cuidadores e até por familiares. Existe uma discussão, ainda que incipiente, sobre a ética de expor uma pessoa que já não tem mais o poder de consentimento. Além, claro, de viralizar conteúdos que podem, de alguma forma, materializar estereótipos dessa condição.
No fundo, um vídeo postado nas redes sociais nunca vai contar a história toda de uma pessoa, então, será que não é melhor preservar e perpetuar o que sabemos dela apenas na nossa memória?