Meu trabalho é, em grande parte, conversar com gente. Ultimamente, tenho notado as pessoas com quem eu converso cada vez mais doentes: trabalhando com Covid, afastadas por burnout, passando por dores físicas e mentais das mais diversas. E eu? Bom, eu também não tô nada bem.

A Gallup há décadas mede o bem-estar no mundo e recentemente divulgou seu levantamento de 2021: o Brasil aparece em quinto lugar entre os países em que as pessoas mais sentiram preocupação. Embora o descanso seja um direito previsto na Carta de Direitos Humanos, na Constituição Federal e na CLT,  39% dos brasileiros não se sentiam descansados (8% acima da média mundial) naquele ano. Além disso, 4 em cada 10 brasileiros relataram ter sentido dor física no dia anterior à pesquisa (quase 10% a mais que a média mundial).

Estamos coletivamente em estado de esgotamento físico e mental

Estamos coletivamente em estado de esgotamento físico e mental. Não é à toa que o conteúdo sobre autocuidado bomba nas redes sociais enquanto tentamos encontrar soluções individuais para amenizar o mal-estar que sentimos. Mas será que essa pauta não está se tornando tóxica quando somos bombardeadas com conselhos como “desacelere” ou “você não precisa trabalhar tanto”, sendo que a maioria das pessoas não tem escolha?

Do entregador de aplicativo à designer de startup, parece que o novo (bem velho) normal passa por precarização dos direitos trabalhistas, jornadas abusivas, assédio moral, falta de clareza nos processos, e tudo isso somado às dificuldades e incertezas de se viver no Brasil em 2022. Não há corpo ou cabeça que dê conta e, embora a gente esteja vendo profissionais bem remunerados repetirem o fenômeno americano de pedidos de demissão em massa, a realidade da maioria é a incerteza sobre a comida no prato. Ao fundo, Beyoncé canta o hino dessa era: You Won’t Break My Soul (mas estão tentando bastante).

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Fomos tão adestrados pelo pensamento neoliberal a pensar de forma individual que nos sentimos insuficientes, incapazes, verdadeiras perdedoras diante da impossibilidade de “dar conta” de trabalhar nessas condições. Buscamos a saída em terapias, rituais, exercícios e, como diria Caio Fernando Abreu, “já li tudo, cara, já tentei macrobiótica psicanálise drogas acupuntura ioga dança natação cooper astrologia patins marxismo candomblé boate gay ecologia, sobrou só esse nó no peito, agora faço o quê?”.

Talvez o autocuidado que a gente precisa agora seja a consciência de votar em quem vai lutar pelos nossos direitos

Audre Lorde dizia “cuidar de mim não é autocomplacência, é autopreservação, e isso é um ato de guerra política” ao falar sobre autocuidado como uma necessidade de pessoas negras darem atenção à própria saúde física e mental como forma de se reabastecer para voltar à batalha por direitos. Me parece que hoje esse conceito foi distorcido e perdeu seu caráter político. 

Não há aula de yoga, meditação, velas perfumadas, cremes e nem mesmo remédios controlados que dêem conta do mal-estar que estamos vivendo. Talvez o autocuidado de que a gente precisa agora seja a consciência para votar em quem vai lutar pelos nossos direitos.. Talvez autocuidado, hoje, seja ir para a rua em protesto contra o ciclo de morte e violência que mulheres e outros grupos minorizados vivem. 

Está mais do que na hora de responsabilizar quem normaliza e possibilita jornadas de trabalho exaustivas e que desrespeitam os fluxos do corpo humano, quem nos faz viver com medo da violência e nos coloca em permanente estado de escassez. A exaustão não é um problema individual e, portanto, precisa de uma abordagem coletiva de governo e corporações.