Em tempos de boom de vendas de Ozempic e da volta da estética esquálida, não é exagero dizer que o chamado de “estilo magra” (slim) flerta com traços de adoecimento. Os transtornos alimentares são velhos conhecidos das mulheres, segundo o Ministério da Saúde, afetam 4,7% da população, e podem chegar a 10% entre a população mais jovem. Pois hoje, para além das implicações nutricionais, estudiosos apontam outros desdobramentos da cultura anoréxica. “Anorexia emocional” ou “anorexia afetiva” não são termos oficiais, mas têm sido usados para explicar a aversão e o medo crescentes de se alimentar das emoções vindas dos romances. Entra aqui também o medo de “pesar nas relações”.
“Do mesmo jeito que quem sofre de anorexia nervosa tem medo de consumir o alimento e começa a olhá-lo como algo que faz mal e engorda, muita gente está com medo de se nutrir de afeto. A nutrição, nos dois contextos, acaba sendo vista como vilã, como algo tóxico”, afirma Fabíola Duarte educadora, especialista em comportamento alimentar e feminino e estudante de psicanálise Winnicottiana.
Uma das causas dessa recusa de receber afeto é o “heteropessimismo”, essa sensação coletiva de decepção e desesperança com as relações heterossexuais. Foram tantas frustrações acumuladas que veio essa aversão a qualquer aproximação masculina, como um medo que qualquer afeto possa nos deixar no mesmo estado lastimável que vivenciamos antes.
“Chega-se a pensar que é melhor não se relacionar, já que assim nos mantemos num lugar seguro”
Outra raiz do problema está na dificuldade em lidar com alteridade. Em tempos de polarização, cultura do cancelamento e bolhas virtuais têm sido cada vez mais difícil lidar com a individualidade e as especificidades do outro. Não é incomum, nos dizermos exigentes sem perceber que estamos, na verdade, intransigentes e, assim como nas dietas restritivas, criamos nosso próprio cardápio com uma lista imensa de restrições e atos proibidos. “Eu acho que a anorexia relacional aponta para isso também: uma dificuldade muito grande de lidar com a diferença. Não estamos suportando a diferença e, assim, a encaramos como ameaça” explica a psicanalista Gabriela Vargas especialista em transtornos alimentares e fundadora do @corpoincinsciente.
“Apesar de ser sofrido, muitas vezes chega-se a pensar que é melhor não se relacionar, não se arriscar, porque assim a gente se mantém num lugar seguro. É um lugar confortavelmente desconfortável, mas que parece melhor do que ir para o desconhecido”, explica Gabriela. “Nessa cultura autocentrada, do ame-se primeiro e depois ao outro, cria-se a ilusão de que sozinha você pode dar conta de todo o amor. Mas essa ilusão tem se transformado em patologia”, completa. Já que não podemos controlar o amor do outro, a velocidade de resposta do outro, as certezas do outro, fazemos essa contenção emocional na tentativa de nos proteger, sem perceber que estamos definhando.
Junto com essa obsessão pelo controle há um medo enorme do descontrole: “Como eu tenho medo de começar a comer e não parar nunca mais… É melhor eu nem comer. Esse medo de perder o controle vem no apaixonamento também. Eu tenho medo de ficar louca, apaixonada. Então é melhor eu nem começar. São mulheres que não confiam na própria pulsão. Estar em pulsão é correr riscos, e precisamos voltar a ter coragem” reforça Fabiola.
As implicações nocivas dessa anorexia afetiva vão muito além dessa recusa de receber o afeto de futuros pretendentes. Alguns sintomas mais comuns, e bastante preocupantes, são a desconexão do próprio sentir e o movimento de se diminuir para caber no espaço simbólico de uma relação.
Desautorização do sentir
Recebo diariamente perguntas como: “Deveria ou não deveria estar com ciúmes em tal situação?”; “Deveria ou não deveria estar irritada porque esse rolo ainda não virou namoro?” Deveria ou não deveria… E reparem, assim como buscamos referenciais externos para nos autorizar a comer uma ou duas colheres de arroz, parece que precisamos que alguém nos autorize a sentir e nos garanta que isso não nos fará mal nem fará mal à relação.
“Minhas pacientes chegam muito desconectadas. Já nem sabem dizer se estão com fome, o que gostam de comer… querem alguém que os diga o que é certo fazer para não engordar. Na relação acontece a mesma lógica: é tanta desautorização e medo do próprio desejo que em dado momento a mulher se desconecta dele” afirma Gabriela. Essa desconexão vem do medo de um peso que vai muito além dos quilos na balança. “É preciso entender esse medo de ‘pesar emocionalmente’ nas relações. O medo de ser um fardo, de ser demais, querer demais”, pontua Gabriela.
Diminuir para caber
Quem nunca teve medo de pesar numa relação? De ser uma pessoa que demanda muito, que é muito carente, que fala demais sobre as questões tristes. E quem nunca se diminuiu para caber na agenda e na vida do cara? Nós mulheres, aprendemos que comida demais engorda, e que isso não é bom. E aprendemos também que querer muito um cara o afasta, o que é igualmente terrível. Resta pra nós, assim, uma educação que nos estimula à contenção e ao sacrifício. “Essa obsessão em regular o tamanho de si mesma é quase como se a saída para a existência fosse se manter num certo tamanho”, afirma Fabiola. Há uma espécie de medo do transbordamento de nosso sentir.
Temos medo de ocupar o próprio espaço e, ao controlar e restringir nossos afetos, corremos o risco de entrarmos em estados de inanição. Tal qual acontece na anorexia. Na anorexia afetiva passamos a acreditar que qualquer demonstração de afeto é desmedida. O medo de comer uma banana e engordar um quilo se traduz no medo de mandar uma mensagem e desandar a relação. Nessa lógica, entramos num looping de culpa. “É quase como se fosse uma outra sensibilidade. Quase tudo é demais” explica Fabíola
A cura passa pela reconexão
Freud diz que a gente precisa amar para não adoecer. As relações nos nutrem mas, assim como na alimentação, podemos refinar nossas escolhas para melhorar nossa saúde emocional. “Se essa mulher não teve um exemplo de relação saudável nos pais, se não teve uma construção legal da autoestima, provavelmente vai se envolver em relacionamentos difíceis. Então, o trabalho de tirar essa pessoa dessa anorexia é ajudá-la a vivenciar relações seguras, pra que ela possa entender que pode ser amada e amar o outro, sem se perder “, explica Fabiola.
E junto com essa vivência de estar com o outro sem se perder, é essencial que possamos nos reencontrar conosco e com nossos desejos, validando-os na medida, intensidade e peso em que aparecem.
Parte do tratamento da anorexia é estimular a paciente a criar um diário alimentar, onde ela possa anotar em que momentos sentiu fome, teve vontades específicas e quais foram alimentos prazerosos, por exemplo. Podemos pensar num paralelo convidando-nos a fazer um diário emocional para que a gente registre nosso sentir: quais emoções afloraram naquele dia, quais foram seus gatilhos, o que nos ajudou a lidar com elas. “Quando a paciente chega ela tem medo do seu desejo; está totalmente guiada pelas regras externas. Meu convite é que ela vá percebendo o que gosta, o que não gosta, o que sente… por que assim ela se desprende dos parâmetros externos e passa a se haver com o próprio desejo”, explica Gabriela
Buscar vínculos seguros em mulheres que passam por situações semelhantes pode ter um poder enorme de cura e transformação. “Eu acredito que o primeiro lugar de cuidado ou cura é estar num grupo de mulheres e falar, ‘nossa, tem tantas aqui como eu’. Quando eu escuto a outra, parece que eu estou escutando a mim mesma. E aí, eu acho que elas se dão conta, que tem algo que é estrutural e coletivo.”
Assim como a pressão estética é estrutural, a pressão para diminuirmos nossos desejos e vozes pra caber numa suposta história de amor também é. Para mudar padrões, não basta trabalharmos individualmente em nossos divãs, é preciso nos unirmos para validar e ocupar nossos espaços emocionais. Vamos juntas?