Querer não é profissionalizante: por que a trajetória importa - Mina
 
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Querer não é profissionalizante: por que a trajetória importa

Você pediria para realizar uma cirurgia sem ter formação na área? Então por que é assim na área cultural? Manuela Dias celebra a importância da prática e da repetição

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“Manuela, meu sonho é escrever, me dá uma chance na sua novela?”

Recebo diariamente variadas mensagens com esse conteúdo. Tento sempre acolher o sonho e respondo, quase invariavelmente, com a mesma pergunta: “qual é a sua experiência ou formação?”. A resposta já não surpreende: normalmente é nenhuma – tanto para experiência, quanto para formação. 

Não existe tutorial de 3 minutos que vá transformar esse talento em uma profissão

E eu penso: “meu deus, a pessoa nunca escreveu uma cena e acha que a primeira cena que ela escreverá será para uma novela!…” É como imaginar que alguém estaria apto a operar o intestino de um paciente porque sempre quis ser médico. Ou que poderia subir num púlpito universitário e lecionar sobre o Antropoceno para doutorandos porque sonha em dar palestras, mas nem entrou na Faculdade de Antropologia. 

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Fico angustiada de ver como, hoje em dia, a etapa de preparação foi subtraída dos processos. É claro que a tecnologia democratizou o acesso à informação, mas é preciso entender que informação é essa. Porque, uma coisa é certa: não importa a potência do seu talento, não existe tutorial de 3 minutos ou busca no Google que vá transformar esse talento em uma profissão. 

A preparação, o estudo, a dedicação, as “horas de voo” sobre uma prática ou tema… Todo esse esforço não é apenas sobre aquisição de conteúdo. Esse é um tempo de maturação da sua percepção com aquele viés profissional. Além de estudo, normalmente a profissionalização envolve um período de experiência e reflexão como estudante, aprendiz, assistente, auxiliar…

Até que – através de exemplo, repetição, prática e suor – seu corpo, sua forma de apreender o mundo e todo seu aparato humano transforma aquele talento disforme em uma ferramenta de ação. Só então, você estará apto a atuar e ser reconhecido como um profissional. 

Levei 15 anos colaborando em diversos programas até escrever para uma novela 

O processo de aprendizado não é sempre gratificante. Envolve muita frustração, paciência e humildade. Não se escala a montanha em um dia, mas em anos. Aprender também não é um processo necessariamente glamouroso e, excetuando um ou outro momento de eureca, de iluminação de entendimento, serão anos de persistência. Arar, plantar, regar. É isso, você está cuidando do seu solo e deve fazê-lo com afinco, pois tudo, necessariamente tudo que você colher na sua vida, virá dessa terra. 

Até que um dia, todo aquele engajamento brota como uma planta, dando sentido ao seu esforço. Ainda não é a hora da grande colheita, mas o trabalho começa a mostrar que vai dar resultados. Nesse momento, você vai sentir uma das coisas mais poderosas do mundo: que é capaz de fazer algo com expertise. Você sabe como fazer. E saber é coisa eterna, ninguém, nem nada, nunca vai tirar isso de você.  

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Desde o meu primeiro dia na Globo, eu queria escrever novelas. Mas levei 15 anos como colaboradora em diversos programas, até conseguir colaborar na minha primeira novela – Cordel Encantado, da Duca Rachid e Thelma Guedes. Depois, levei mais anos para conseguir estrear como autora com uma série. E então mais outros tantos até conseguir ter uma novela “minha”. 

Se por um lado, é escrevendo que se vira um escritor, é preciso ter o que dizer para falar. É preciso ser um profissional, para depois sentir que se pode vender esse trabalho. Ter vontade e ver um tutorial no Tik Tok não torna ninguém um profissional competente, estudar, sim. 

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