Em 1970, éramos uma nação de especialistas em futebol. Em 2016, éramos uma nação de especialistas em impeachment. Depois, nos graduamos em temas vários: STF, linguagem neutra, prisão em segunda instância, beijo homoafetivo em quadrinhos, voto eletrônico e impresso, ICMS de diesel e gasolina. Mas o fato é que neste 2021 cravamos uma nova conquista: nos tornamos uma nação de especialistas em menstruação. Mais especificamente: uma nação de homens especializados em menstruação.
Esse fenômeno ficou bastante explícito nas redes sociais, digitais ou não: no Instagram, no Twitter, na mesa de bar ou dentro dos ônibus, lia-se e ouvia-se uma parcela masculina da população comentar sobre um dos assuntos-chave do país neste segundo semestre: a pobreza menstrual. O estopim: o veto do presidente Jair Bolsonaro ao Projeto de Lei 4.968/2021, que institui o Programa de Fornecimento de Absorventes Higiênicos nas escolas públicas dos ensinos fundamental e médio, de autoria da deputada federal Marília Arraes (PT-PE). A rejeição ecoou e logo surgiram milhões de comentaristas craques em mênstruos e menarcas.
Como o nome de Bolsonaro era chave na discussão, não demorou muito e seu mais fiel contingente, justamente formado por homens, abandonou pautas como o chip 5G implantado em quem tomou a vacina contra Covid e migrou para o mundo dos Tampax, Modess e coletores menstruais. Comecei a ler coisas realmente fascinantes: no Twitter, uma pessoa chamada Patriota Estrela estava indignada e vociferava em maiúsculas sobre o “absurdo” de uma arrecadação de absorventes feita por estudantes para pessoas em situação de rua. “Não devem saber nada sobre análise sintática ou a história da família real brasileira”, escreveu.
Se os homens menstruassem, quando virassem “mocinhos”, os meninos receberiam presentes, cerimônias religiosas e jantares em família
Na mesma rede, o sr. Joziel Dias entrou no perfil da deputada Tábata Amaral, apoiadora do projeto de lei, e bradou: “faça alguma coisa relevante pro Brasil, PORRA” (em um rasgo de elegância, Joziel preferiu não usar exclamação após o palavrão). Já uma @ com o simpático nome de João das Couves foi até mais suave, quase como um absorvente com camada tripla de proteção: “Essa pauta é legal e tudo o mais, mas não tem outras prioridades nesse momento?”. Na fila no caixa eletrônico em um supermercado perto da minha casa, fui agraciada com os comentários de um senhor de óculos escuros, que, ao telefone, falava alto e para todo mundo ouvir algo como: “isso é palhaçada, a mulher não tem dinheiro para comprar absorvente, mas não falta para colocar crédito no celular”. Pois é: garota pobre achando que tem direito de se comunicar, usar o zap e ainda uma proteção mensal para segurar o sangue… onde esse país vai parar?
+ Veja também O lugar onde sou livre
Reunir as manifestações destes nobres senhores, a maioria defensores de um bolsonarismo radical, me remeteu ao famoso artigo da jornalista e feminista norte-americana Gloria Steinem, “E se os homens menstruassem?”, escrito em 1978. No texto, ela faz um exercício interessantíssimo de imaginar uma sociedade na qual somente eles fossem os menstruados: teríamos um cenário completamente diferente, no qual a menstruação seria valorizada, celebrada e mesmo motivo de competição, algo do tipo “que nada, o meu fluxo é maior do que o teu”. Os meninos, quando virassem “mocinhos”, receberiam presentes, cerimônias religiosas, jantares em família. “Para evitar a perda mensal de trabalho entre os poderosos, o Congresso financiaria um Instituto Nacional de Dismenorréia. Os médicos pesquisariam pouco sobre ataques cardíacos, dos quais os homens seriam protegidos hormonalmente, mas tudo sobre cólicas”, escreveu Gloria.
No artigo original, não vemos espaço para homens transgêneros que, naquele momento, menstruavam: eles existiam, povoavam ruas, festas, feiras, parques. No entanto, se ainda há hoje pouquíssima visibilidade desta população, em 1978 o apagamento era ainda maior. No Brasil, um marco já fora traçado: em 1977, o psicólogo João Nery realizava – mas, significativamente, às escondidas – a primeira cirurgia de readequação sexual de um homem transgênero no país. Quatro décadas depois do texto de Gloria, é impossível não pensar em outra pergunta, preciosa quando feita inclusive a feministas e grupos LGBTQIA+: e quando os homens menstruam?
A provocação feita em 1978 pela jornalista me fez pensar no nicho específico de homens brasileiros que, usando camisetas apertadinhas, performam macheza quebrando placas de rua em homenagem a vereadoras assassinadas. Também no Brasil no qual uma parcela barulhenta deles entende qualquer traço social-cultural relacionado ao feminino como sinal de fraqueza. Não importa, inclusive, se forem mulheres cisgêneras, transgêneras, travestis, homens transgêneros ou percebidos como afeminados: qualquer distanciamento do boy que berra “eu sou macho para caralho” é uma afronta.
Imaginei, por exemplo, como seria a dinâmica das motociatas realizadas por Bolsonaro em diversas cidades do país. “Ah, droga, preciso parar um momento, o meu OB tá mal posicionado”, diria o patriota sessentão para o colega, fazendo questão de deixar claro que a menopausa ainda não havia o alcançado. “Cara, você tem que usar o Tampax mini, se adapta melhor ao corpo, você nem sente que está usando”, se gabaria o companheiro de estrada.
Nesse Brasil dos machos compradores de absorventes, estaríamos lutando agora pela manutenção da riqueza menstrual
Entre os caminhoneiros que volta e meia demonstram apoio ao presidente, vários truques seriam repassados: os chás para aliviar as incômodas cólicas que pioram por conta de tanto tempo sentados ao volante; os absorventes mais poderosos para evitar vazamentos que mancham o assento; os segredos para não deixar o sangue descer naquele fim de semana de encontro marcado com a patroa. Os banheiros dos postos de gasolina teriam vários tipos do produto, indicados para fluxos de carga pequena, média ou pesada. O “Auxílio Modess”, como chamou o presidente Jair Bolsonaro, seria mais importante que o Bolsa Família e, caso houvesse ameaça de suspendê-lo, os caminhoneiros bloqueariam as estradas e a economia do país iria à ruína.
+ Veja também Dá pra tocar maternidade, carreira e culpa, tudo ao mesmo tempo?
Em uma parcela muito específica dos apoiadores, os patriotas gratiluz, aqueles que saem do retiro espiritual para marchar pela liberdade de não usar máscara, o comportamento seria diferente: fariam stories sobre as maravilhas do coletor menstrual ou dos absorventes reutilizáveis; estampariam anúncios fofos de cuecas-absorventes feitas de tecido reciclado; pressionariam o Congresso a aprovar a distribuição de coletores feitos de cânhamo, mas seriam ridicularizados por membros da bancada BBB (bíblia, boi e bala). Nos jornais, vazaria o áudio de um ministro do meio ambiente cuja marca registrada são os óculos de grau laranjas: “foda-se a floresta, homem que é homem menstrua lucrando e com praticidade.”
Nesse Brasil dos machos compradores de absorventes, estaríamos lutando agora pela manutenção da riqueza menstrual, inclusive as mulheres, aquelas parceiras talvez simples demais que nunca iriam saber o que é a grandeza de um ciclo. Um importante psiquiatra e neurologista até escreveria sobre a inveja feminina da ovulação masculina.
Acorda!
Mas acorda aí, Maria: não estamos nesse Brasil de futuros imaginados. Bem aqui, agora, as pobrezas são bastante sortidas: de emprego, de comida, de tempo, de humanidade. De absorvente. Tem dinheiro só para botar crédito no celular que usa para trabalhar e faltou protetor para estancar o sangue, minha filha? O pai perdeu emprego na pandemia, a mãe tá ganhando R$ 80 por uma faxina? Ah, bota algodão. Ou jornal. Ou miolo de pão. Falta aula na escola. Passa vergonha se a roupa manchar. Enfim, te vira.
Os homens “macho pra caralho” vão seguir elencando as pautas mais importantes para discutirmos agora. Sempre livres.