Um dia desses, uma amiga postou no stories uma análise que ela fez sobre a letra de Psiu, da Liniker. Adoro essa música, me passa uma sensação gostosa, como se recebesse um abraço, mas nunca tinha percebido o quanto me identificava com seu significado: “Pra quem não sabia contar gotas, cê aprendeu a nadar”, diz o primeiro verso da canção em que a cantora narra um momento de transformação. E assim como seu antigo eu, já me encontrei em um estado de “planeta Marte”: seca, prática. Tudo que eu queria era redescobrir meu ritmo de novo depois do caos que foram esses últimos dois anos – e tenho conseguido, mas antes de chegar lá preciso recapitular a minha história.
+ Leia também: Um ano sem Paulo Gustavo
+ Leia também: Fé também é autocuidado
A pandemia me proporcionou um giro de 180°graus na vida. Virou tudo de cabeça para baixo, como se eu tivesse no meu próprio “mundo invertido” de Stranger Things. O ano de 2020 começou esperançoso. Tinha um emprego estável, morava com um casal de amigos e tinha uma relação ótima com meus pais. Meu pai estava com Alzheimer em estágio inicial, controlado por remédio. Minha mãe parecia lidar bem, dentro do possível, com as prováveis consequências da doença no futuro. O que ninguém contava era que chegaria um vírus terrível e transformaria rapidamente nossas vidas em um filme apocalíptico.
Meu pai pegou Covid no fim de abril, foi internado em maio, um dia depois do dia das mães. Passamos dois meses sem vê-lo. A doença avançou seu quadro de Alzheimer. Entre julho e setembro, eu e minha mãe ficamos morando dentro da enfermaria de um dos mais famosos, e precários, hospitais do Rio de Janeiro para acompanhar meu pai internado por complicações do vírus. Como muitos, perdi meu emprego no meio do caminho. Ele voltou para a casa em setembro, mas era outra pessoa. Completamente dependente, perdeu sua mobilidade, sua independência. No início da pandemia, levei meu pai de 72 anos ao hospital, e 5 meses depois voltei para casa com uma criança de 72 anos.
“Maternar” meu pai durante os últimos dois anos foi um processo de despedida diária
Nesse processo, me descobri ansiosa crônica e busquei tratamento. Enquanto me fortalecia através da terapia, minha mãe escondia de mim – e dela mesma – todas as consequências emocionais e, principalmente, físicas que o medo de perder meu pai causava nela. Ao longo de 2021, foi perdendo peso, ficando deprimida, cansada e sentindo dores físicas inexplicáveis. Em outubro, a situação ficou insustentável e ela foi internada. Enquanto investigavam o que ela tinha, meu pai partiu. Exatos 30 dias depois, ela também me deixou.
Foram dois processos de luto distintos, já que “maternar” meu pai durante os últimos dois anos foi um processo de despedida diária. Nunca sabia se aquela seria a última refeição, o último remédio, o último curativo. Então, quando ele se foi, senti uma sensação de dever cumprido. Com a minha mãe, foi diferente: pensei que ela voltaria para a casa e poderia ser de novo a pessoa cheia de energia de sempre. Então, quando ouvi dos médicos que sua condição oncológica era irreversível e a única coisa a se fazer era aguardar sua hora, meu mundo invertido caiu. Eu não saberia viver sem ela. Passei a minha vida inteira medindo minhas escolhas, desejos e atitudes na régua da máxima “qual a opinião da minha mãe sobre isso?”. Como viver a partir de agora? Como fazer escolhas? Quem vai se preocupar comigo? Quem vai se orgulhar de mim? É o que ainda estou tentando descobrir. E não está sendo fácil.
Tenho me sentido bem perdida nesses últimos meses, principalmente porque coisas muito boas tem me acontecido. Após dois anos extremamente solitária, escolhendo agir como “planeta Marte” – seca, prática, direta – para conseguir continuar, a última coisa que pensava era que uma pessoa me mostraria que não preciso estar sozinha. Ainda mais tão rápido assim. Pois chegou.
O luto é a uma prova de que aquela pessoa querida existiu e que ela ainda é gigante na nossa vida
Depois de passar tanto tempo cuidando dos outros, quando tinha alguém querendo cuidar de mim, me assustei. Me surpreendi porque descobri que, assim como Liniker, muito mais do que contar gotas, eu sabia nadar. Tudo o que eu queria era mergulhar, mas tinha medo. E, ao mesmo tempo, venho me sentindo culpada. Culpada por me sentir feliz. Estaria muito cedo para isso? Quanto tempo um luto deve durar?
O que eu tenho concluído até aqui é que uma perda vai ser sempre uma lacuna, impossível de ser preenchida. Cada ser é único e o lugar que ele ocupa tanto quanto. O movimento agora é o de descobrir quem sou sem minha mãe. O luto, no sentido da sensação de perda, é uma prova de que aquela pessoa querida existiu e que ela ainda é gigante na nossa vida. Sempre vai ser. Aprendi a não fugir e, sim, a mergulhar nele. Negar a falta que minha mãe me faz é negar a importância dela na minha vida.
Entretanto, também foi imprescindível me permitir mergulhar em diferentes águas, subir a superfície e tomar fôlego. Isso é a vida: uma sucessão de temporadas secas, e depois de muita chuva, que pode vir a se tornar um rio, um mar… Não tem como controlar a previsão do tempo. É impossível. A única escolha que nos cabe é se iremos nadar ou não. Eu escolhi nadar. Mergulhar com tudo. É o mergulho que nos permite sobreviver aos períodos de estiagem. E ouçam Psiu.