Leticia Vidica: "Aquilombar-se é verbo de ação e afeto" - Mina
 
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Aquilombar-se é verbo de ação e afeto para mulheres negras

Em celebração ao Julho das Pretas, que tem como objetivo dar visibilidade às mulheres pretas, Letícia Vidica reúne jornalistas inspiradoras para falar de um cuidado fundamental para esse grupo: o ato de se aquilombar

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Você sabe o que é aquilombamento? Não, não estou falando dos quilombos, aqueles lugares onde os escravizados fugidos encontraram refúgio e liberdade no período colonial. Mas de um aquilombamento que vai além da história e está mais vivo do que nunca. Um conceito poderoso que envolve afeto, ancestralidade e representatividade, é motor para o crescimento coletivo e faz um bem danado para a saúde mental.

Na etimologia pura da palavra, quilombo significa “união, local de descanso, acampamento”. Vem do tronco linguístico Banto, falado principalmente entre os povos que vieram da região onde hoje está a Angola. Só que nos dias de hoje, quilombo é mais que um espaço, virou verbo de ação e afeto: aquilombar. 

Aquilombar-se é, antes de tudo, uma reconexão com nossas raízes, uma celebração da ancestralidade que nos fortalece. Um potente instrumento que oferece não apenas um refúgio, mas um terreno fértil para o crescimento coletivo. Em um mundo onde o racismo e a misoginia ainda são tão presentes, o aquilombamento de mulheres negras é fundamental, defende Cris Guterres, jornalista e apresentadora da TV Cultura.

“É sobre a gente se fortalecer, criar nossos próprios espaços de diálogo, de cura, de troca. É sobre a gente se reconhecer como potências, como mulheres incríveis que somos, com uma história de luta e resistência que vem de longe”. A jornalista e apresentadora Alinne Prado completa: “quilombo é resgate, amor e cura.” 

Fazer imersão em um quilombo foi fundamental para que ela saísse de uma depressão profunda causada pelo racismo. “Tive uma crise no meio de uma cachoeira e meu marido me levou pra um restaurante na região. Lá, me deparei com uma placa escrito: Quilombo Cafundá Astrogilda. Perguntei à proprietária se ali era um quilombo e ela disse: ‘bem vinda a sua casa!’”. Já são oito anos se aquilombando por ali. “Criei vínculos muito profundos que se tornaram a minha família. Não fico um mês sem abraçar aquele povo. Quando cheguei, tomava um monte de remédio, hoje não preciso mais”.

Frequentar espaços de aquilombamento permite que as mulheres negras encontrem apoio mútuo

Em um contexto em que a saúde mental das mulheres negras é frequentemente negligenciada e sofre o impacto da pressão constante do racismo estrutural e das múltiplas opressões, o aquilombamento surge como uma forma de cuidado. Ainda bem. Afinal, só com a mente em dia a gente consegue seguir lutando, resistindo e vivendo plenamente. 

Criar e frequentar espaços de aquilombamento permite que as mulheres negras encontrem apoio mútuo. “Apoio para a gente seguir adiante, para avançar mesmo diante das questões sociais. Apoio para viabilizar os nossos projetos, para nos ajudar a seguir sonhando mesmo quando uma sociedade diz não para a gente”, celebra Valéria Almeida, jornalista e apresentadora da TV Globo.

A colunista e editora da Vogue Claudia Lima acredita que o aquilombamento é sobretudo um ato político. “Onde podemos encontrar os nossos e colocar nosso ponto de vista, nossas dores e alegrias sem ter de nos explicar ou justificar.” Para nós, estar entre os nossos para trocar afeto é, sim, um ato revolucionário. Um grito de resistência que diz: estamos aqui e nos cuidamos.

Espaços de aquilombamento permitem que nossas histórias de sucesso e superação sejam contadas e celebradas. Quando a gente se reconhece e se vê em  outras mulheres negras, isso se torna um impulso poderoso, nos inspira e dá  coragem para seguir em frente, sabendo que não estamos sozinhas nessa jornada. Isso valida nossos sonhos e o triunfo de uma é o triunfo de todas.

Por isso, há quase dois anos, eu e Cris Guterres criamos o coletivo Herdeiras de Glória Maria para reunir jornalistas negras da comunicação. O nome é uma homenagem à jornalista que foi pioneira enquanto mulher negra na televisão e inspirou muitas de nós a sonharmos e realizarmos a possibilidade de ser jornalistas também. O grupo que, hoje, reúne cerca de 60 mulheres é um espaço de trocas e afetos, mas sobretudo de fortalecimento dentro da comunicação. Um lugar para não nos sentirmos mais sozinhas, uma vez que ainda somos minoria no universo do jornalismo. 

Sem apoio emocional, fica difícil lidar com as adversidades e seguir em frente com mais força

“Sempre vi o aquilombamento com deslumbre, até um certo romantismo, mas hoje percebo que nunca superestimei o conceito. Conheci a prática do aquilombar e percebi o quanto é poderoso. É  acolhimento, ajuda, crescimento coletivo, estratégia. São incontáveis qualidades. Aquilombamento é potência”, compartilha  Luciana Barreto, jornalista e apresentadora da TV Brasil. 

Como diz Angela Davis, “quando uma mulher negra se movimenta, toda sociedade se movimenta com ela”. Já percebeu como isso transforma nossas vidas e nossas comunidades? Sem esse apoio emocional, sem esse afeto, sem o reconhecimento, fica difícil lidar com as adversidades e seguir em frente com mais força.“Porque sozinhas a gente até vai, mas, juntas, vai muito mais longe, né? A gente se apoia, se inspira, se empodera. E quando se une, a gente transforma”, diz Cris. Concordo plenamente. E faço aqui então um chamado a todas as mulheres negras: aquilombem-se! 

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