Ana Canosa reflete sobre o heteropessimismo e as relações amorosas - Mina
 
Suas Emoções / Entrevista

Ana Canosa: “Fico sensibilizada que hoje exista um luto relacional, acho as relações afetivas muito gratificantes”

Tá muito difícil se relacionar, isso é fato. Mas e agora? Em conversa com a Mina, a psicóloga e terapeuta sexual Ana Canosa reflete sobre os caminhos que têm feito as mulheres hétero desistirem do amor com homens e responde à pergunta do milhão: e aí, como a gente sai dessa?

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Com tanto estímulo ao nosso redor para que tudo no mundo seja sob demanda — do aplicativo de táxi ao de comida —, a velocidade e a profundidade dos relacionamentos parecem estar entrando na mesma lógica. O problema: as pessoas não funcionam sob demanda e, o amor, muito menos. Em bate-papo com a Mina, a psicóloga e sexóloga Ana Canosa reflete sobre esse vazio de conexões pessoais significativas, heteropessimismo e o papel que as mulheres já não querem mais assumir nesse momento histórico, principalmente porque elas vêm assumindo tantos outros nas últimas décadas. 

Para a especialista, a saída é o diálogo com homens dispostos a enxergarem as parceiras como verdadeiros pares. Ela também fala sobre a visão masculinizada do sexo casual, as expectativas que ainda podemos criar sobre amor, a importância da vulnerabilidade e, é claro, sobre a possibilidade de distribuir nossas expectativas sobre a felicidade em vários interesses — incluindo o do sexo sem maiores.

O heteropessimismo parece atingir mulheres hétero de todas as idades e perfis. Como você vê esse momento?
Isso é algo bem forte, principalmente nos últimos anos. Mas eu gostaria que pudéssemos ter um olhar um pouco mais terno pra tudo isso, sabe? Meu tema de trabalho em consultório, há 30 anos, é a dificuldade de relacionamentos das pessoas. E vejo que há questões da natureza humana que são anteriores ao patriarcado. Outras são desse momento histórico, associado com questões culturais, de desigualdade de gênero, questões religiosas… A própria questão da monogamia como uma proposta de exclusividade é uma produção cultural — mas o desejo de exclusividade não é uma só produção cultural. O desejo de exclusividade acontece já no primeiro ou segundo ano de vida. O ciúme é da natureza humana, ele vira produção cultural quando associam ele ao amor, como se fosse prova de alguma coisa. Então eu acho que existem diferenças, inclusive, da maneira de olhar o mundo, que são diferentes nos recortes de gênero.

Que tipos de diferença são mais marcadas?
Eu acho que tem questões do afeto, diferenças hormonais… No caso da mulher, é sempre difícil que os outros entendam exatamente as mudanças de humor da TPM, da Menopausa — ou todas as coisas que envolvem nossos hormônios. Da mesma forma, não dá pra gente simplesmente negar que também existem questões no masculino que remetem ao comportamento sexual. Quando a gente nega a potência da existência masculina, e coloca tudo como uma produção cultural doente, ficamos sem saída. Se o diálogo for sempre permeado pela ideia de virar “professora de macho”, qual será a proposta, então? O que é que nós vamos fazer sobre isso? Vejo um grande problema em colocarmos uma intencionalidade na figura masculina — se for tudo uma produção cultural e ponto, esse cara nasceu nesse contexto e acabou… A mulher heterossexual se dá mal junto, não tem solução. 

“A maneira de usufruir do sexo casual, que é uma linguagem, é evidentemente, masculina”


Mas há uma encruzilhada, né? O que fazer?
O que pode nos salvar é a intenção de um diálogo, de uma construção conjunta. Entendo que o heteropessimismo é o cansaço da forma como as relações heterossexuais estão estruturadas. Mas, se nós estamos aprendendo a ser assertivas, a compreender relações tóxicas, a não nos colocar como objetos, então os homens também estão aprendendo essas coisas. Alguns estão a fim, outros não, a gente vai ter que dialogar com os que estão a fim. 

Voltando um pouco às questões culturais, qual seria o papel dos aplicativos de encontros nesse cenário todo? 
O sexo casual, de alguma maneira, foi um privilégio masculino por muito tempo, né? Então, o desenrolar dessas dinâmicas ainda se dá do jeito deles — essa coisa de dissociar o sexo do afeto é uma questão histórica. Muitos homens associam o sexo casual com um “não quero nem ver no dia seguinte, não faço questão de cuidar, não pode ser nada afetivo”. E boa parte das mulheres vêm de uma proposta completamente diferente. A gente foi condicionada de outro jeito. Pra poder fazer sexo, a gente tinha que amar. Tinha que ter conexão e isso está em nós. São duas linguagens muito diversas. 

E o que acontece quando o sexo casual entra nessa equação?
Quando as mulheres passam a usufruir da liberdade sexual, elas se deparam com um jeito muito masculino de usufruir desse sexo casual, um jeito que não conversa muito com a gente. E não é que as mulheres queiram sempre compromisso ou que nenhum homem queira compromisso. É a maneira de usufruir do prazer, no casual, que é uma linguagem, evidentemente, masculina. Acho que isso é algo que não tem funcionado mesmo, e a gente ainda não descobriu um modo mais “feminino” de funcionar no sexo casual também. 

Você fala em masculino e feminino. Precisa ser assim?
Eu gostaria de não fazer menções sobre jeito ‘masculino’ e jeito ‘feminino, que fosse tudo sobre ‘pessoas’, mas de fato, ainda não é assim. Entre o real e o ideal há o possível. Não estou reforçando chavões, mas não há como negar que é difícil ‘abandonar’ comportamentos. Já mudamos racionalmente, olhando para a desigualdade e lutando por direitos, mas as emoções levam mais tempo. Precisamos fazer as duas coisas. Um olhar para o futuro e cuidar do que é dor de hoje. 

“Acho que o contexto tecnológico das interações também pesa nessa dificuldade de cultivar relações”

E como é que a gente pode fazer isso de um outro jeito?
Talvez assumindo a confusão, conversando sobre elas de um modo mais gentil. Eu sei que há muita gente ‘cansada’, mas não é fácil mesmo encontrar alguém com quem a gente tenha química, valores em comum, mais ou menos os mesmos interesses e que esteja disponível para um compromisso. Nunca foi. Diálogos abertos sempre foram difíceis, porque nem todo mundo está disponível, os homens menos ainda, porque não foram educados para lidar com emoções. Vejam como eles lidam com assuntos difíceis com os amigos — desviam para a piada. As pessoas vão para essa mediação dos aplicativos achando que, porque tem muita gente, elas vão encontrar facilmente alguém com quem se conectem. Mas acho que o contexto tecnológico das interações também pesa nessa dificuldade de cultivar relações. Nunca foi fácil, agora talvez esteja mais esquisito, porque há muita variação. 

Falando mais particularmente da emancipação financeira e emocional das mulheres, mais da metade dos lares brasileiros são chefiados por mulheres. Quando a mulher percebe que está liderando a casa, a própria vida e que está tendo sucesso em tudo isso, ela também não desanima de colocar um homem nessa dinâmica? Até porque muitos deles se portam como filhos.
Várias pesquisas correlacionam a satisfação conjugal com a a divisão de tarefas domésticas entre casais hétero. As mulheres com parceiros que dividem as tarefas domésticas são as mais satisfeitas. Até porque esta divisão vai mostrar que existe ao seu lado um companheiro, e não um filho. O que é o casamento? É uma divisão, uma empresa. É você estar com alguém produzindo um tipo de satisfação e conforto, caminhando num projeto. Não dá para, em um projeto comum, eu fazer tudo e só você usufruir. Então, quando as mulheres passaram a dizer “eu não estou aqui só por causa do seu dinheiro e do seu sobrenome” —  porque esse era o acordo social anterior —, elas ocuparam os espaços públicos e passaram a esperar por um companheiro, não um provedor. Quando o homem de hoje não muda a linguagem, porque ele não fez o caminho que as mulheres fizeram, não dá certo. As mulheres vão se sentir sobrecarregadas, usadas, e vão ter essa sensação de que estão com mais um filho — e não com um parceiro de vida.

Dá raiva, né?
Li recentemente uma pesquisa sobre a questão da fluidez do desejo sexual. E o que faz o desejo sexual flutuar? Cansaço e estresse estão entre os motivos. No caso das mulheres, apareceu no estudo também a raiva. Na minha leitura, ela está ligada a essa  herança de nascer mulher no contexto do patriarcado e do machismo. A gente está com muita raiva da desigualdade e ela se expressa em conclusões como “não preciso disso”. A gente ainda não consegue olhar para isso com um diálogo ameno. E essa ideia não tem nada a ver com passividade, mas tem a ver com a aceitação da nossa condição histórica. De novo: não é aceitar, se subjugar, se submeter. Mas é perceber que, infelizmente, nascemos em um tempo histórico que foi cruel com as mulheres e que a nossa condição é de luta. É um exercício de aceitação e posicionamento constante. O exercício de lutar e buscar  associação com homens que queiram partilhar esta vivência, que compreendam e que tenham a intenção legítima de criar laços saudáveis. Se não for assim, a gente vai querer matar e brigar com todo mundo. 

Que as mulheres estão com raiva é fato. Até porque não é qualquer homem que vai topar essa virada comportamental delas. Mas não te parece que os homens também estão com tanta raiva dessas mudanças quanto elas?
Sim, com certeza. Mas o que me interessa aqui, agora, é falar do que nos aproxima, sabe? Acho que esse é o desafio no momento. E o mundo masculino também tem as suas questões, seus afetos, suas dúvidas, suas dores e a solidão. E não é negando as dores masculinas que a gente vai resolver qualquer coisa. Eu tenho a impressão de que isso vai ser uma mudança gradual, porque se associa com um momento de mundo. Talvez a juventude tenha que amargar um período mais árido nesse sentido enquanto não houver diálogo. Eu acho que a gente tem que apostar na educação de crianças e adolescentes sobre essas questões e, aí, no futuro, é possível que as coisas melhorem. 

É uma visão otimista…
É um desejo, algo no qual devemos trabalhar. Mas sou um pouco cética também, tá? A maneira como a tecnologia entrou inclusive na satisfação da nossa libido… Daqui a pouco ninguém está nem se relacionando. Está gozando com o celular e tchau. Eu tenho sentimentos e ideias bem ambivalentes sobre o futuro das relações. Não tenho respostas.

E esse comportamento dopamínico com a tecnologia permeia até outros tipos de relações, não? As de amizade, de trabalho, tudo muito mediado por telas e sem tempo para “fazer nada” juntos, que era como costumávamos criar laços com as pessoas antes da internet.
Está difícil se relacionar profundamente, antes de tudo. As pesquisas falam que os jovens não estão transando. Isso é importante a gente dizer: não dá para colocar tudo na conta do heteropessimismo ou do machismo. Falta possibilidade de treinar a comunicação afetiva. Pelo aplicativo que não vai ser. É uma questão multifatorial. Tem uma porção de coisas no nosso entorno influenciando esse vazio de conexões pessoais. As pessoas estão desencontradas consigo próprias, com seus anseios, suas necessidades e com a própria saúde mental. Está tudo muito errado. A quantidade de horas que a gente trabalha, a velocidade que a gente está vivendo. 

“Existe um luto relacional e fico sensibilizada, porque acho as relações afetivas muito gratificantes”

As relações humanas nunca foram fáceis, sempre foram mais difíceis para as mulheres e estão cada vez mais pulverizadas por todos esses fatores. Então, o que essa mulher que é dona do próprio nariz faz para lidar com o heteropessimismo?
Não é simples. Existe uma dor, um luto relacional mesmo. Quando você pergunta “e aí?”, fico sensibilizada, porque acho as relações afetivas muito gratificantes. Elas nos fazem crescer demais e perder isso não é legal. Talvez, a gente tenha que colocar limites e parâmetros para nos unir a alguém, sabe? Pode ser morar em casas separadas; às vezes ter uma relação mais aberta, onde esse encontro aconteça de um outro jeito. Não existe fórmula, mas a ideia é pensar em caminhos possíveis para que a gente siga se relacionando. 

Na velocidade que andam esses encontros e desencontros, parece que fica cada vez mais complexo…
Pois é… a velocidade com que os encontros e as desilusões acontecem hoje é bem maior. Com isso, a gente perde a oportunidade de nutrir as relações e conhecer as pessoas verdadeiramente. Se a gente não tiver tempo, fica difícil criar laços significativos. Sobre o sexo casual, talvez a chave seja a leveza, mesmo. Não precisamos investir energia em todo romance quando podemos equilibrar com outros pesos e paixões da vida. Podemos testar outros formatos e navegar conforme as histórias se apresentam. Mas nada disso significa que essa mulher independente não possa verbalizar para si mesma que ela quer uma relação. Tenho repetido isso: tudo bem querer uma relação legal e acreditar que ela vai existir. 


Virou tabu dizer que quer uma relação?
Sinto que as mulheres têm até medo de dizer “eu quero casar”, “eu quero ser monogâmica”. Dá, sim, para assumir o rolê de um jeito mais positivo. Nada disso precisa ser tão triste ou melancólico. Dá para trocar um “eu quero namorar alguém” por “eu gosto de namorar, de estar numa relação”. Enquanto a gente não tem alguém com o mesmo desejo, pode viver de outra maneira, usufruir de outros prazeres, desinvestir um pouco o foco do relacionamento romântico como único caminho para a satisfação pessoal, mas não precisa negar o seu desejo.

A gente escutou a vida inteira “e viveram felizes para sempre”, não temos muita referência de “e ela viveu feliz para sempre”.
Mas podemos construir várias possibilidades. Você não precisa ter só uma coisa ou só outra, você pode flanar. A gente tem que ir mudando da raiva para uma perspectiva de prazer, de saúde e alegria. E aí a relação heterossexual pode entrar nisso. Vamos escolher quem está a fim de embarcar do jeito mais positivo. A vida já está muito pesada. Não é fácil viver nesse contexto cultural e socioeconômico como uma pessoa adulta. Tem que trabalhar muito, para fazer uma viagem tem que guardar dinheiro, quase nunca dá. Muito pior para mulheres negras e pobres, onde tudo é duplamente difícil. Tudo o que a gente queria, às vezes, era alguém em quem pudesse se aninhar um pouco, dizer “faz um cafuné, estou tão cansada”. Mas sinto que hoje, quando querem um colo, muitas mulheres se sentem diminuídas.

Que os homens possam caminhar junto e estar abertos para ajudar esse mundo a ser menos desigual e um pouco mais amoroso

Dá um déjà vu, né? Porque conhecemos isso. Até pouco tempo eram os homens que relutavam em demonstrar fragilidade…
Né? E a gente já viu onde isso desemboca. Hoje as mulheres estão nessa: não é permitido a elas demonstrar fragilidade, tem que ser a multitarefa, a supermulher. Não pode ligar no trabalho e explicar que está com TPM. Nas relações amorosas, não dá para viver assim. Elas podem e devem ser espaço de afeto e acolhimento, porque é isso o que a gente quer e merece.

E qual é a responsabilidade dos homens em tudo isso? Eles podem ou devem se comprometer com alguma melhora? Será que eles se importam com esse heteropessimismo?
Os homens também têm que entender que nasceram e estão em um lugar de privilégio numa sociedade desigual, então precisam fazer a lição de casa. Não dá para eles combaterem as lutas feministas debochando, ironizando ou diminuindo. Não adianta ficar falando “eu não sou machista”. Cara, você nasceu nesse contexto, tu é e ponto. Não tem como não ser. Aceita essa condição. Avalia se você quer melhorar como uma pessoa humana que legitima o direito de todas as pessoas aos acessos, poderes e desejos, e faz sua parte. Que eles possam caminhar junto e estar abertos para ajudar esse mundo a ser menos desigual e um pouco mais amoroso.

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