Como qualquer outra mulher, ou a maioria delas, já responsabilizei o meu cabelo pela minha autoestima. Afinal, vivemos em uma sociedade de pessoas ‘perfeitas’, ainda que saibamos isso não passa de aparência. Se nos pautarmos pelo padrão estético vigente, eu passo um pouco longe da média: não sou loira e não tenho cabelos longos e nem lisos, o que por sua vez, sempre me fez ter uma grande preocupação com os fios. Sou negra, meu cabelo cresce para cima, não que seja um problema, pelo menos pra mim. Mas, sempre foi um problema para a sociedade.
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Minha relação com o cabelo vem da infância. Vez ou outra, resgato algumas lembranças do meu mapa afetivo: eu no meio as pernas de minha avó materna, enquanto ela trançava meus cabelos, para que eu ficasse “minimamente aceitável”. Devo ressaltar que as tranças foram e ainda são, por muitas vezes, minha linha de fuga. Eu fui uma menina negra e, hoje, sou uma mulher negra, ou seja, o olhar para o meu cabelo é estruturalmente analisado pela ótica da negação e o processo de aceitação pelo o que ele é (armado, pra cima e lindo) foi difícil.
Quando finalmente me conectei comigo mesma, sem químicas ou qualquer outro procedimento que de alguma forma apagasse minha identidade (nada contra a quem alisa o cabelo, somos livres para sermos quem quisermos), fui diagnosticada com Alopecia Areata (AA), após algumas placas circulares aparecem na parte de trás da minha cabeça. A alopecia, para quem ainda não pegou timing do momento, é a queda de cabelo de forma repentina, podendo ser transitória ou definitiva, ela tem um fundo autoimune. Ou seja, é o sistema imunológico atacando o próprio corpo.
Me agarro em ressignificar as coisas, ressignificar o olhar para o corpo que habito.
É difícil viver com AA e igualmente difícil falar dela. Carrego essa carga exaustiva diariamente. São quase dois anos convivendo com ela e, nesse tempo, tive duas quedas agressivas. No final das contas, é um grande paradoxo: de um lado, me manter bem, não pensar muito sobre o assunto para que não se agrave – já que um dos principais fatores dessa condição é o emocional – e do outro o estresse contínuo em que me encontro, sempre buscando tratamentos e soluções. E preciso ressaltar que a alopecia potencializa ainda mais esse estresse, ou seja, é um caos cíclico. Afinal, calvície não tem cura, mas me agarro em ressignificar as coisas, ressignificar o olhar para o corpo que habito.
E aqui vem a parte boa: preciso dizer que me encontrei nesse processo de aceitação contínua, uma vez que tenho olhado outras partes de mim e dessa vez, com mais carinho. A terapia e a dança me ajudam demais nessa jornada.
Acredito que nos últimos dias, muitos tiveram o primeiro contato com a palavra Alopecia e em meio a polêmica do tapa do Will Smith no comediante Chris Rock, no Oscar, a situação deu visibilidade ao assunto. Me deparei com milhares de pessoas com as quais me identifiquei, pessoas que assim como eu, Jada Smith e tantas outras mulheres [e homens também], sofrem com o peso da perda dos cabelos. E, apesar da repercussão ter partido da dor, me senti, pela primeira vez, confortável em falar sobre o assunto.
A queda de cabelo conta uma parte de minha história, mas não me impede que eu trace novos enredos
Parto sempre do princípio que minha vivência, seja ela qual for, vai ajudar o outro de alguma forma, ela é a minha maior ferramenta de denúncia e mobilização e, se uma pessoa tiver contato com esses escritos e se sentir abraçada, já valeu. Porque eu sei quanto vale esse acolhimento. Nos últimos dias fui atravessada de várias maneiras: empatia, conscientização, gatilhos, um mix de sentimentos, mas acima de tudo, mais do que nunca, entendi que não estou sozinha e que por mais que essa condição nos coloque em uma zona de embate com a nossa própria imagem, ainda ocupamos este corpo e ele merece todo respeito, cuidado e amor, ainda que com as falhas, literalmente.
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Por mais complicado que seja, a queda de cabelo conta uma parte de minha história, mas não me impede que eu trace novos enredos e viva novas narrativas. Eu não sou minha alopecia e peço que não me reduzam a isso, mas sim: viver com ela é um ato de coragem. Não importa as adversidades e as batalhas que travo comigo internamente, até porque, elas sempre aparecem – não dá para romantizar. São dias e dias. Mas, hoje, estou em paz com o espelho, estou em paz comigo. Jada já dizia, é tempo da cura. É tempo de nos curarmos, inclusive, de qualquer olhar alheio.