Eu não sabia que escreveria terror. Nem sabia que, quando publicasse meus textos, eles seriam chamados assim. O que sabia é que usaria a arte para expor frustrações, medos e anseios dos quais precisava me livrar, e queria fazer isso usando as palavras. Foi só depois de alguns anos, já escrevendo profissionalmente, que fui estudar psicanálise. Ali, desbravei meu inconsciente de cima a baixo e tive a confirmação de que todas aquelas histórias pesadas saíam, impensadamente, de algo muito profundo dentro de mim. Algo que, sim, me assustava, e espantava também a minha família. Não foram poucas as vezes que escutei pessoas próximas perguntarem: “você tá bem?”. E, sim, por incrível que pareça, eu estava melhor do que nunca.
O terror é a única forma de termos contato com nosso lado mais obscuro
Lembro de uma amiga e colega de trabalho, psiquiatra, que disse: “enquanto conseguirmos colocar nossas frustrações em algo artístico, estaremos a salvo.” Por muito tempo, a discussão sobre a perversão foi deixada de lado em nome da nossa ordem social. Freud foi o primeiro a estudá-la e entender que nossa perversão mais profunda, aquela que negamos, precisa ser vivida de algum modo. Por ser algo que escondemos de todos os outros, vivê-la se torna, então, nosso maior desejo. É exatamente por isso que os filmes e livros de terror, do absurdo e do grotesco chamam tanto a nossa atenção.
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Não é apenas uma maneira de nos proteger de uma realidade violenta, mas a única forma de termos contato com nosso lado mais obscuro de modo acolhedor e aceito pela sociedade. A historiadora e psicanalista francesa Elizabeth Roudinesco, no livro A parte obscura de nós mesmos, cita Dorian Gray (personagem de O retrato de Dorian Gray) e Gregor Samsa (personagem central de A Metamorfose). Ambos passam o recado de um comportamento muito profundo da sociedade, através da representação do grotesco. Gray por mostrar ao mundo uma juventude e beleza contraditórias com sua verdadeira essência, e Gregor Samsa por portar uma grande ternura dentro de um corpo asqueroso.
Talvez a maior contradição trazida pelo horror seja que ele só é possível de ser construído através de uma grande empatia, pois entendemos o que pode impactar profundamente outras pessoas, mesmo quando essas são tão diferentes de nós, mesmo quando isso não é comunicado. O que causa riso é dito aos outros; o medo mais profundo, nem sempre. Quem faz terror como arte trabalha através do não comunicado, das nuances, por isso, talvez o autor de horror precise ser o mais sensível de todos. Alguém incapaz de entender a dor e o medo do outro não teria sucesso nesse meio. Alguém que achasse que tudo é permitido e que nada machuca, não saberia o que assusta, portanto, seria incompetente ao falar com propriedade.
Existe uma delicadeza em manusear o nosso lado obscuro sem o compromisso de ficarmos por lá
A perversão não existe só no outro. Todos nós queremos olhar pelo buraco da fechadura e descobrir o que está do outro lado quando nos dizem para não olhar. Há algo lúdico em acessar esse nosso inconsciente como se ele fosse um sonho. E percebam, existe uma delicadeza em manusear o nosso lado obscuro sem o compromisso de ficarmos por lá. E, sim, é saudável ter acesso a este lugar, pois ali abraçamos algo mais próximo de nossa totalidade.
Como exemplo, posso usar meu livro Vantagens que encontrei na morte do meu pai (2021, editora DarkSide Books), que partiu do meu luto real. Com a escrita dele, passei pelo meu processo de luto que foi, sim, doloroso, mas que me fez criar uma obra a partir de uma dor. Ele virou uma purgação com espectadores. Prova disso é a quantidade de leitores que vêm conversar sobre luto comigo e, por conta do livro, acabam acessando a experiência pessoal dessa dor profunda. Sei que o assunto nem sempre é fácil e que muitos não discutem essa dor com os outros, mas vieram abordar comigo. E vejam, ele não traz uma mensagem bonita em relação à dor. Temos que entender que qualquer história ficcional é apenas o ponto de partida de uma conversa com o outro – ou até consigo mesmo.
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Causar sentimentos negativos com a ficção é criar um lugar seguro para sentimentos catárticos. A raiva, por exemplo, tem potência e, com a energia colocada no lugar certo, pode ser motor de grandes transformações positivas em nossas vidas. A verdade é que goodvibes eternas e ininterruptas são apenas uma negação e não salvam ninguém, pois é impossível que alguém seja só isso.
Somos também o que está escondido, por isso, aconselho sempre as pessoas a abraçarem o que dói, o que incomoda. A tentarem entender de onde vem aquilo que nos impacta de maneira negativa e porquê. Isso dá uma ideia sobre o que está guardado e precisa ser desbravado em nosso inconsciente. O medo é um comunicador de onde aperta nossa inação. Nosso medo diz quem somos e o que escondemos dos outros. E é aqui que o terror pode ser a maior superação. E você? Tem medo do quê?