A que mulher é dado o direito de amar e ser amada? Recentemente, uma declaração da renomada chef Paola Carosella causou espanto na internet por sua simplicidade. Ao ser questionada sobre o ato mais romântico que recebeu, foi categórica: “Já fizeram por mim coisas consideradas muito românticas, como se ajoelhar em lugares públicos, mas a coisa mais romântica mesmo foi com a pessoa com quem estou hoje. Tinha acabado de conhecê-lo, estávamos tomando um drink e minha filha estava dando muito trabalho. Ela me ligou aos gritos dizendo que eu tinha de voltar para casa, estava com ciúme. Disse que precisava ir embora e ele disse que ia junto. Falei que ela era difícil quando gritava e ele falou que mesmo assim iria. Eu estava separando os mundos: de um lado a maternidade; de outro, o namoro. Mas ele não deixou.”
Por que, afinal, parece ser tão desafiador conciliar maternidade e desejo?
A frase, por mais banal que possa parecer, ecoa uma realidade silenciosa e cotidiana vivida por muitas mulheres que são mães. O ato de permanecer ao lado de uma mulher com filhos, nesse contexto, não é apenas uma demonstração de afeto, mas uma resistência às estruturas que isolam a mulher mãe de sua própria vida amorosa e sexual. Mas por que, afinal, parece ser tão desafiador conciliar maternidade e desejo?
A solidão materna vai além da ausência de um parceiro ou parceira, trata-se de um abandono estrutural, emocional e identitário. No Brasil, os números escancaram a dimensão do problema: mais de 11 milhões de mulheres criam sozinhas os filhos, de acordo com o IBGE. Além disso, uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz revelou que mais de 25% das mães relataram sintomas de depressão no puerpério, reflexo, também, de uma sobrecarga que é frequentemente invisibilizada. Esse é o terreno onde brota a solidão materna: muitas das vezes, a mulher que é mãe não apenas se torna responsável única pelo cuidado dos filhos, mas também é frequentemente privada de sua própria vida.
O tabu da mãe desejante
Em minha casa, sou filha de uma mãe solo, mas a possibilidade de amar e ser amada não escapou à sua porta. Casada com meu padrasto, minha mãe não só encontrou um companheiro como também descobriu, nele, um parceiro para a criação da filha. Eu tinha quatro anos quando ele chegou. E, ali, aos 25 anos, Marcelo, meu padrasto, já era o cara mais bacana do planeta. Dava aula de tênis e fazia faculdade de Educação Física e Direito. O bairro inteiro gostava dele. Porque Marcelo é gentil, divide o que sabe com generosidade e paciência.
Sua chegada inaugurou um bocado de coisas: Marcelo me deixou tomar Coca-Cola escondida e ia com orgulho às reuniões de pais no colégio; levou-me para ver Titanic na sessão da meia-noite e também me buscava de madrugada nas festinhas de 15 anos. E entre todas as pequenas coisas que fazia, ensinou, nas entrelinhas, que eu merecia ser amada com presença e carinho. Com respeito e cuidado. E com orgulho, me chamou de filha. Tudo isso, mesmo depois que o seu filho chegou. E aquilo, junto com a dedicação de minha mãe, deu-me algum lugar no mundo. Uma borda, um contorno e a oportunidade de ser filha do cara mais bacana do planeta.
+ Leia mais: Se sonho tivesse spoiler, era capaz da gente nem sonhar
+ Leia mais: Miranda July coloca a perimenopausa no seu devido lugar
Sei que fazemos, eu e minha mãe, parte de uma exceção que confirma a regra. Historicamente, a figura da mãe foi confinada ao mito da santidade: um ser abnegado, puro e devotado à criação dos filhos. Esse ideal, que muitas vezes aprisiona, colide violentamente com o reconhecimento da mãe como uma mulher que deseja, que ama e que busca prazer.
A feminista Adrienne Rich, em Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution, aponta que a maternidade como instituição frequentemente sufoca a experiência vivida da mulher: “Tal como os seus filhos a viram: a mãe no patriarcado: controladora, erótica, castradora, sofrida, cheia de culpa e provocadora de culpa; uma testa de mármore, um peito enorme, uma caverna ávida; entre as pernas cobras, grama do pântano ou dentes; em seu colo uma criança indefesa ou um filho martirizado. Ela existe com um propósito: gerar e nutrir o filho”. Esse discurso, ainda tão presente, faz com que as mulheres que ousam buscar relações amorosas ou sexuais enfrentam o peso do julgamento social e, não raramente, o conflito com os filhos.
Mulheres que ousam buscar relações amorosas ou sexuais enfrentam o peso do julgamento social
Não é incomum que crianças e adolescentes manifestem resistência a novos parceiros dos pais, sobretudo das mães. Como explica a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, em muitas culturas, é atribuído à figura materna um papel de sacralidade e exclusividade, quase como se a mãe não tivesse direito a uma vida amorosa além do cuidado com os filhos. Esse paradigma, além de sufocante, desumaniza: ele retira da mãe sua própria identidade.
No Brasil, a situação é agravada por questões sociais e econômicas. Mulheres que criam os filhos sozinhas frequentemente enfrentam dificuldades financeiras, o que limita ainda mais seu acesso a espaços de lazer, convívio e novas possibilidades de relacionamento. Estudos também mostram que a divisão desigual do trabalho doméstico sobrecarrega as mães. Segundo o IBGE, mulheres dedicam, em média, praticamente o dobro do tempo dos homens ao cuidado de filhos e afazeres do lar. Essa carga não deixa apenas pouco espaço para a busca de novos parceiros, mas também para a vivência plena de sua própria sexualidade.
Além disso, os estigmas sociais reforçam barreiras emocionais. Uma pesquisa da Inner Circle revelou que um terço das mães solteiras espera mais de cinco anos para procurar um novo parceiro. Entre as dificuldades apontadas, estão o fato de não se sentirem atraentes (24,4%), a ansiedade de conhecer novas pessoas (24%) e a preocupação com o estigma de ser mãe solteira (21,5%). Entre as entrevistadas, 52% disseram ter sofrido ghosting após contar que tinham filhos. Dados como esses expõem não apenas o preconceito, mas também o isolamento estrutural ao qual essas mulheres são submetidas.
Fissuras no mito da mãe abnegada
A solidão materna não é inevitável; ela é o reflexo de uma sociedade que ainda não reconhece plenamente as mulheres como seres integrais. O maior ato de amor que uma mãe pode receber é, talvez, a estrutura e a liberdade para ser ela mesma: com desejos, afetos e paixões que transcendem a maternidade.
E, para que isso aconteça, é preciso repensar os sistemas sociais que perpetuam a solidão materna. Isso inclui uma divisão mais equitativa do trabalho doméstico, políticas públicas que favoreçam a independência das mulheres e um esforço coletivo para romper com os tabus que cercam a mãe enquanto mulher desejante.
Esse é, portanto, o convite: que possamos, enquanto sociedade, criar espaços em que as mulheres sejam vistas em sua totalidade. Que as mães não precisem mais de provas heróicas de amor. Escrevo no desejo de que, daqui para a frente e cada vez menos, a realidade de minha mãe e de Paola Carosella não seja uma exceção, mas uma possibilidade palpável para todas as mulheres no campo dos afetos.