De repente, naquela manhã, a toalha permaneceu pendurada no banheiro, o chinelo na beira da cama e o travesseiro com o cheiro do perfume da noite anterior. Talvez tenha até um resto de café na caneca que está na pia. A diferença é que onde havia presença, agora há luto. Sem aviso, sem preparo, sem doença, tratamento ou despedida. A interrupção da vida em tragédias e crimes talvez seja um dos silêncios mais ensurdecedores da existência humana.
No filme Ainda Estou Aqui, dirigido por Walter Salles, e protagonizado por Fernanda Torres e Selton Mello, acompanhamos a história (real) de Eunice Paiva, uma mulher que precisa lidar com o desaparecimento e o luto do seu marido, Rubens Paiva, que em 1971 foi vítima da ditadura militar brasileira. Aparte as atrocidades da ditadura e do Estado, que só em 1996 emitiu um atestado de óbito para o corpo que nunca apareceu, a resiliência e a determinação de Eunice em tocar a vida traz lições preciosas para quem, de um dia para o outro, precisa encarar a morte de alguém muito amado.
“O luto é a resposta do vínculo afetivo que eu tenho com uma pessoa”
Em entrevista ao Canal Renata Moniz, Fernanda Torres fala sobre sua personagem no filme que estreia amanhã (07/11): “Eunice tem que enfrentar um silêncio por parte de um Estado autoritário e que está numa distopia, torturando pessoas, num cenário que ela não terá o corpo do marido, e nenhuma explicação do porque ele foi morto daquela maneira”, diz.
A história de Eunice Paiva não é um caso isolado no Brasil, para além dos crimes cometidos na ditadura militar, muitas famílias lidam, ainda hoje, com mortes abruptas, sejam de violência urbana, policial ou catástrofes climáticas. Histórias de mortes repentinas e violentas. “O luto é a resposta do vínculo afetivo que eu tenho com uma pessoa. E as circunstâncias da morte determinam como vai ser esse processo. Quando ocorre uma morte abrupta, todas as esferas da vida de quem fica são afetadas, tanto a física, como a emocional e a cognitiva”, revela Joelma Ruiz, psicóloga especialista em luto.
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Segundo o American Journal of Psychiatry, lutos abruptos estão mais associados ao desenvolvimento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), “as pessoas ficam com o pensamento obsessivo, se questionando do porque isso aconteceu com elas, e o emocional vira uma montanha russa de emoções”, diz Joelma.
Mesmo em casos de mortes trágicas, muita gente tem dificuldade de expressar suas emoções. Segundo um estudo publicado no Journal of Affective Disorders, quem consegue se expressar de forma aberta e busca apoio social tende a experimentar uma recuperação mais eficaz. Gisela Adissi, fundadora do Grupo Vamos falar sobre o Luto, fala sobre os riscos de um luto não expressado. “Pode virar uma comorbidade, até mesmo uma grave depressão”, diz.
Buscar ajuda profissional com psicoterapias, terapia de luto e ter espaço para falar desta perda é essencial para progredir. Gisela fala da importância do grupo de apoio: “Há uma identificação entre aquelas pessoas, isso traz acolhimento. Nesse espaço todo mundo te entende”, diz Gisela. Um estudo de 2020 na revista Death Studies sugere que a partilha de experiências pode ajudar a normalizar os sentimentos e a criar um espaço seguro para expressar o luto.
O tempo cura tudo?
Muitas vezes pensamos que o tempo é o grande remédio para o luto, que ele sozinho irá amenizar a dor. Entretanto, é o que se faz com esse tempo que importa. “Não existe linearidade no luto e para cada pessoa o processo acontece de um jeito”, diz Joelma, frisando que o começo é sempre muito difícil. “O primeiro ano do luto é marcado por datas, o primeiro Natal sem a pessoa, o primeiro aniversário… isso tem um impacto”, diz.
Outra coisa que influencia no que fazemos com esse tempo de enlutamento é o anseio de retomar a vida ou até as obrigações que o cotidiano traz, que faz com que muitas pessoas acabem não expressando seu luto. Esse modus operandi é chamado pelos especialistas de “luto adiado”. “O organismo entra em modo de sobrevivência, como por exemplo, uma pessoa que ficou viúva e tem crianças para cuidar, de início, ele não processa aquela dor e essa conta chega só depois”, diz Joelma. Talvez, Eunice se encaixe neste grupo.
Existe também a negação do luto. Segundo a especialista, isso pode acontecer de duas maneiras: quando a pessoa só vive no passado e não faz a restauração das suas próprias demandas no presente ou, ao contrário: só vive no presente e não consegue retomar o que era sua vida antes dessa perda. O processo saudável envolve uma dualidade: “uma ora relembro o momento da notícia e da perda e em outra estou voltada para a restauração da minha vida, das minhas demandas de hoje. Esse processo é o que consideramos um luto saudável”, diz Joelma.
“Culturalmente, buscamos dar uma solução para a dor da pessoa enlutada, mas ela não existe”
Cultura do luto
O luto é universal, mas como essa experiência se dá é algo que envolve outros fatores além do enlutado. “No Brasil, vivemos uma cultura de não permissão ao luto e culturalmente achamos que temos que dar uma solução para a dor da pessoa, mas não há solução. O que podemos fazer é escutá-la e validar a sua dor”, diz Gisela.
Não é por acaso que por aqui é muito comum até se evitar falar o nome do falecido após a morte, o que torna o processo de expressão do luto ainda mais difícil. Uma pesquisa realizada em 2018, pelo Studio Ideias, a pedido do Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) revelou que 30,4% dos brasileiros não sabem como ou com quem falar sobre morte, e que 10% acreditam que falar pode inclusive, atraí-la.
“Vivemos em uma sociedade de ganhos. As pessoas não costumam postar coisas tristes no Instagram, por exemplo. Só que quando a gente não fala das nossas perdas, nos tornamos praticamente incapazes de cuidar delas. Como vamos cuidar de algo que dói, mas não sabemos nomear?”, diz Joelma.
Rituais e espiritualidade
As cerimônias e rituais são importantes para compreender que aquela pessoa querida partiu. “Quanto mais tempo durar o velório, maior a presença da rede de apoio naquele momento. E independente do formato, é importante ritualizar para trazer apoio para quem fica e frisar o significado social que a pessoa falecida tinha” , diz Gisela
No processo que se segue, a espiritualidade é um facilitador do luto. “Muitas pessoas, inclusive, encontram a sua espiritualidade justamente nesse processo”, afirma Joelma. E por mais que seja mais simples pensar na espiritualidade estando em uma igreja, templo, terreiro ou barracão, é importante lembrar que ela pode se manifestar de outras formas, como no contato com a natureza. “Para alguns, fazer uma trilha, respirar um ar puro, abraçar uma árvore, ajuda a trazer um novo sentido”, completa a especialista. A busca por se conectar com algo traz uma esperança para essa nova vida e deve ser um recurso.
Insuperável?
Ao lidar com uma morte repentina, precoce ou em decorrência de violência, a tendência é acharmos que essa dor será insuperável e que o que sentimos nesse momento vai nos acompanhar para sempre. Segundo Joelma, pensar desta forma só traz mais pressão para a pessoa que está enlutada. “O processo do luto precisa ser elaborado e integrado, e isso ocorre quando conseguimos falar de quem partiu com uma saudades boa, quando é possível ver fotos e colocar essa pessoa no meu mundo emocional, mesmo que ela já não esteja mais no mundo físico”, finaliza Joelma.