Ser feliz é revolução para as pessoas pretas
Nossa colunista Letícia Vidica conta como foi o Festival Feira Preta e fala sobre o tema do evento, o direito à felicidade, que por tanto tempo foi negado e considerado uma afronta
Quero começar esta coluna com uma pergunta que parece corriqueira e clichê: você é feliz? Melhorando um pouco mais o meu approach: você pode ser feliz? Mergulhando ainda mais nesse rolê da felicidade: você tem o direito de ser feliz? Não, eu não estou louca ou tentando vender alguma mentoria ou coach por aqui, meu objetivo é outro. Vamos lá.
Caso você seja uma pessoa branca, todas ou, pelo menos, a maioria das respostas aos meus questionamentos poderiam ser “sim”. Mas e os meus pretinhos e pretinhas? Você, pessoa preta (como eu), já pensou sobre isso? Tem mais “sim” ou “não” nessas respostas? A tão sonhada jornada da felicidade que para tanta gente é comum, para as pessoas pretas, pode ter ares de afrontamento.
É como se a gente ouvisse o tempo todo: como assim vocês querem ser felizes? Como se dão a audácia de sorrirem? Como se o único lugar que nos coubesse fosse o da dor, do sofrimento, das dificuldades. Quem disse? Queremos, sim, ser felizes e celebrar nossas existências, porque sabemos, agora, que ser feliz é a nossa revolução.
Como disse Adriana Barbosa, diretora executiva da PretaHub e do Festival Feira Preta, que aconteceu no último final de semana, no parque Ibirapuera, em São Paulo: “A população preta tem passado por muitas questões e a gente está sempre na luta, na resistência. Em que momento a gente vai falar de felicidade, de bem viver? O tema da felicidade como revolução é justamente para a gente trazer uma perspectiva de mentalidade que projete ser feliz. Não só falar de dor, não só lutar, não só resistir. A gente vai continuar lutando, a gente vai continuar resistindo, mas a gente também precisa ser feliz”.
Apagar a história de um povo e aquilo que lhe dá força é uma das armas mais poderosas de aniquilamento
O maior evento de empreendedorismo negro há mais de duas décadas virou um festival e a temática desse ano foi “ser feliz é a nossa revolução”. Isso é forte, é potente, é quase subversivo, mas é real, é necessário e é a nossa libertação. Foi uma alegria estar lá. No mês da chamada “Abolição da Escravatura”– a que os livros de História tentaram nos convencer por anos –, nada mais poderoso do que celebrar aquilo que nos foi ceifado de fato por anos e que é a nossa arma mais poderosa: a felicidade.
Celebrar a existência de corpos negros, nos dar o direito a sorrir juntos, dançar juntos, nos abraçarmos, nos olharmos profundamente nos olhos e nos reconhecermos, fazer o nosso dinheiro girar entre nós… nos aquilombarmos! Essa é a nossa revolução. Isso nos empodera e quem roubou a nossa autoestima por séculos sabia (e sabe) muito bem disso. Apagar a história de um povo e aquilo que lhe dá força é uma das armas mais poderosas de aniquilamento. Mas como já disse Dona Conceição Evaristo, muito bem dito, “a gente combinamos de não morrer”.
“Felicidade tem que ser algo que a gente almeja, que a gente mentaliza todos os dias. Eu não tô falando de uma felicidade clichê, ‘ai, hoje eu tô feliz’, não é sobre isso. É da gente introjetar essa perspectiva da felicidade em tudo que a gente faz, em tudo que a gente deseja. Pelo histórico que a gente teve, do processo da colonização, de tudo que aconteceu, toda a desigualdade que ainda assola os dias de hoje, a felicidade é muito cara pra gente”, continuou Adriana.
Concordo plenamente. “A felicidade ainda é muito cara pra gente.” Não posso aqui dourar a pílula e ignorar que pessoas pretas nesse país pagam um preço muito alto em busca da felicidade. Um preço que vale nossas vidas, nossos corpos, nossa segurança, nossa paz, nossa saúde mental e financeira. Um preço que pagamos por séculos e séculos ao redor do mundo todo.
“Nós, afros do mundo, estamos conectados por diferentes linhas. A primeira que nos une é a África, nossa mãe. Depois vêm algumas conquistas, como a da liberdade, algumas problemáticas, como o antirracismo, e também a excelência negra, a forma de fazer as coisas. Nos unimos em causas, propósitos, virtudes e desafios”, disse o artista afrocolombiano Zathelite, criador do Negro Fest, que acontece em Medellín (Colômbia) e celebra a excelência negra. “Ser feliz é uma revolução porque nos vendem uma ideia de que devemos estar deprimidos. São muitos conteúdos na rádio tradicional ou na televisão que levam à tristeza. Então, neste momento, ser pacífico, ser amável, amar e ser feliz é uma revolução”.
“O que nos une é a capacidade que temos de transformar nossas dores”
E nos reencontrarmos novamente através da diáspora é mais revolucionário ainda. “Finalmente, estamos nos reencontrando”. Foi exatamente o que eu disse durante uma atividade de conexão com pessoas pretas de várias partes do mundo lá no festival enquanto olhava para toda aquela gente parecida comigo na cor, nas roupas, no cabelo, na energia – com o idioma como única diferença. Olhava para aquelas pessoas, cada uma de um continente, de um país, negros da Colômbia, Ruanda, EUA, Reino Unido, Nigéria, Burkina Faso, Costa Rica, Buenos Aires… mas como os mesmos objetivos, os mesmos propósitos, as mesmas lutas e felizes pelo sentimento do reencontro e do que podemos fazer juntos novamente.
“Vimos que o que nos une é a dor. Porém, mais do que a dor, o que nos une é a capacidade que temos de transformar nossas dores”, bem compartilhou comigo a estilista afrocolombiana Lia Samantha, que vive em Bogotá. “No final das contas, é isso. A gente quer falar de dinheiro, a gente quer falar de prosperidade. Então, bora prosperar nessa felicidade. Prosperar de uma maneira abundante. Não só em dinheiro. Estou falando de tudo. De uma felicidade sistêmica na nossa vida”, profetizou Adriana Barbosa.
Se dar ao direito de ser feliz – por um momento, por um instante, por uma vida – pode parecer uma utopia para algumas pessoas, mas não é. E não tem que ser. Do jeito que for, do jeito que puder. Sem esquecer ou ignorar as dificuldades, que são muitas, mas começar a normalizar o nosso direito de sermos felizes enquanto corpos negros é um belo começo de transformação.
Então, pergunto: o que te faz feliz?
“A PretaHub me faz feliz. Aqui, hoje, vendo todo mundo feliz, me deixa feliz”. E você nos fez muito felizes, Adriana. Como fui feliz nesse festival. Quantos corpos negros tão lindos, tão coloridos em sua existência, tão livres, tão radiantes, quantos sorrisos… quase uma felicidade coletiva num mantra silencioso que pairava na energia do ar e que gritava silenciosamente: “Sim, somos felizes. Ser feliz é nossa revolução e a felicidade é nossa por direito. Respirem. Sim, a gente pode respirar juntos!”