Viver em uma sociedade onde o desempenho e a produtividade estão acima do bem-estar e da qualidade de vida tem feito com que muitas pessoas tomem decisões arriscadas à saúde, como buscar nos medicamentos uma chance de aumentar suas supostas chances de sucesso. Ritalina, Venvanse e outras substâncias, principalmente da classe das anfetaminas, se tornaram queridinhas daqueles que, por fim, têm medo de falhar diante de tanta cobrança social e corporativa por perfeição.
Em 2010, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han trouxe em seu livro Sociedade do Cansaço um ensaio sobre as enfermidades que acometem a sociedade moderna. Na obra, o autor traz o conceito de “sociedade do desempenho” para tratar dessa obsessão por produzir e performar que se estabeleceu dentro do sistema capitalista. E vale para todos os contextos: profissional, acadêmico e social.
Mas, de acordo com o filósofo, o tiro teria saído pela culatra. Em vez dessa produtividade e performance promover mais satisfação, essa dinâmica está gerando pessoas depressivas e fracassadas.
Risco iminente
Se apenas a alta expectativa sobre o resultado das nossas ações podem nos levar para lugares de transtornos mentais, imagina tudo isso intensificado com os efeitos colaterais químicos promovidos por certos medicamentos? Os riscos à saúde são iminentes, de acordo com os especialistas.
Em vez dessa performance promover satisfação, está gerando pessoas depressivas e fracassadas
“O Venvanse e a Ritalina podem causar ansiedade e problemas circulatórios, como hipertensão arterial e taquicardia, além do uso crônico promover dificuldades cognitivas, como falta de memória e problemas de atenção – o que iria exatamente contra os objetivos de quem os utiliza”, explica o psiquiatra Wilson Gonzaga. E faz um alerta maior: “Todos esses medicamentos têm tolerância, isto é, cada vez é preciso usar doses mais altas para atingir os mesmos efeitos”.
Mesmo em meio a tantos riscos, profissionais da saúde seguem receitando medicamentos para quem se sente impelido a entrar de cabeça nessa corrida maluca por alta performance.
Os riscos à saúde são importantes de serem avaliados, mas, antes e depois do início dessa intervenção medicamentosa, há uma discussão ética e moral fundamental, mas, muitas vezes, ainda sem bordas, uma vez que se trata de relações sociais.
“Os remédios também causam ansiedade e problemas circulatórios, além de dificuldades cognitivas”
Já na questão dos médicos, o CFM (Conselho Federal de Medicina) até tem suas diretrizes para os profissionais da saúde que receitam esses medicamentos para seus pacientes, mas será que essas orientações estão sendo seguidas e suas sanções devidamente aplicadas?
Médicos podem ter registro cassado
A regra é clara, segundo o Conselho Federal de Medicina, não é correto receitar medicamentos para aumentar a performance dos pacientes, uma vez que os remédios são indicados para o tratamento de doenças e transtornos específicos, como é o caso do Venvance e da Ritalina, usados, principalmente, por pacientes com TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade).
O conselheiro federal do CFM pelo estado de Goiás, Salomão Rodrigues Filho, afirma que esse tipo de prática é condenável, podendo, inclusive, levar à perda do registro profissional do médico. “Geralmente, a denúncia parte do próprio paciente que, após começar a sofrer com problemas de saúde associados a uso desses estimulantes, decide registrar uma queixa”, afirma.
Porém, nem tudo parece tão simples assim.
O psiquiatra Wilson Gonzaga conta que há casos ainda “muito piores” praticados por seus colegas, mas que ficam impunes devido à dificuldade de levantar provas contra a palavra do médico.
Mas, e quando não há diretrizes ou até penalidades formatadas sobre o uso dessas substâncias? Quais os limites morais e éticos quando elas impactam nas dinâmicas sociais?
Não dá para falar sobre essa busca inveterada por performance sem considerar a mudança no patamar e na função das medicações em geral no quadro de produção neoliberal, de consumo, que lida muito mal com qualquer tipo de limite.
Quais os limites morais e éticos quando o uso dessas substâncias impacta nas dinâmicas sociais?
O psicanalista e professor titular em psicanálise e psicopatologia do Instituto de Psicologia da USP (Universidade São Paulo), Christian Dunker, conta que, dos anos de 1980 até os dias atuais, a sociedade tem a emergência da chamada medicina de Enhanced.
“Não temos mais a medicina que se preocupa em recuperar funções, restabelecer o que foi perdido, voltar ao funcionamento anterior do organismo, mas sim de aumentar a performance. São próteses, órteses, medicações que dizem aumentar as funções cognitivas, atencional, sexual, produzindo estados de funcionamento que são maiores e melhores do que se tinha antes do uso das substâncias. Isso faz com que tenhamos dificuldade de saber se isso é medicação ou doping, o que desequilibra a competição entre as pessoas”, diz Christian.
Liberdade individual ou doping?
A partir dessa análise trazida pelo psicanalista, é possível observar diversas situações sociais nas quais a justiça pode ser questionada, uma vez que entre as pessoas pode haver quem esteja medicado e colhendo os “benefícios” desse doping, como é o caso de quem presta uma prova de vestibular ou concurso público, por exemplo. Além disso, essa falta de limites do sistema neoliberal quando o papo é produzir não tem permitido uma discussão mais crítica, uma vez que esbarra em liberdades individuais.
“No universo laboral, as pessoas também fazem escolhas que ultrapassam o recomendável pelo próprio bom funcionamento do organismo em nome do melhor rendimento. É um curioso tipo de nova liberdade, de usar seu corpo para além do que pode ser saudável.”, diz o professor.
A falta de limites do sistema neoliberal inibe a discussão crítica, já que esbarra em liberdades individuais
“Tudo isso exige um novo patamar de discussão jurídica, ética e moral para pensar o uso de tecnologias de alteração no corpo e no desempenho humano”, finaliza.
Por fim, não há uma solução pronta, uma vez que não se trata apenas de criar leis, normas e afins, mas sim de repensar todo um sistema social que induz a esse tipo de prática.