“Como você quer ser chamado?” Ele estava sentado no sofá conversando com um amigo quando recebeu essa pergunta. Na hora, olhou para mim e com um olhar reflexivo disse: “ninguém nunca me perguntou isso”. Foi nesse momento que a transição oficialmente começou, porque, no fundo, no fundo, minha esposa sempre foi um maridão da zorra.
No primeiro momento pensei: agora que ela é ele, eu tenho que falar no masculino, preciso pedir desculpa toda vez que chamá-lo de “ela” e entender que a última palavra dentro de casa é do meu marido. Será que é assim que tem que ser? Foram tantas perguntas que, quando eu pisquei os olhos, o garçom já estava entregando a conta para ele. Surtei! Socorro, voltei a ser hétero.
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Sempre gostei de meninas e meninos. Meu primeiro beijo foi em uma garota e, se vagamente lembro, o meu segundo também, mas não sei por que eu nunca tinha vivido um relacionamento com uma mulher. Já tive umas ficadas duradouras, mas nada que envolvesse convivência ou rotina, mas quando o assunto é macho, passei por muitos namoros e até vivi um pseudo casamento com um bon vivant.
Em meio à pandemia conheci meu caminhãozinho da barbie, e uma relação que poderia passar por vários estágios foi acelerada pela quarentena: vivemos dez anos em alguns meses. Em um mar de tempestade, encontrei um porto seguro nos braços de uma mulher. Essa palavra ‘mulher’ sempre dá um quentinho no coração.
“Após viver o céu em um relacionamento lésbico, dizer que estou com um homem parece que estou voltando 20 casas.”
Estar em uma relação sapatão me permitiu viver um nível de confiança, entrega, cumplicidade, carinho, respeito, diálogo, empatia e troca que nunca experimentei em um relacionamento hétero – e olha que passei por experiências de muito carinho e respeito, mas nada que chegasse perto disso. Ou seja, após viver o céu em um relacionamento lésbico, dizer que estou com um homem parece que estou voltando 20 casas.
No fundo, eu sentia algo gritando dentro de mim: “Pô amor, vira uma pessoa agênero, não binário, gênero fluído, mas homem não”.’ Porém, quando o assunto é transição de gênero, não é como trocar de roupa, a coisa é muito mais profunda.
Mesmo cheia de reflexões, minha vontade de apoiar era tanta que a cada “linda, fofa, querida, maravilhosa” ou qualquer outro adjetivo que eu me referisse no feminino para me dirigir a ele parecia o maior dos crimes. Virei uma fiscal dos pronomes, inconscientemente eu fui buscar referências nas minhas experiências afetivas com homens e para isso eu precisei abrir o baú dos antigos valores heteronormativos.
Na cadeia alimentar das relações sociais, minha esposa subiu um degrau ao se tornar um homem. Um mar de privilégio se abriu para ele apenas por ser um homem, se não fosse o fato de ser negro e trans. Todo esse desconforto abriu margem para uma reflexão: “Que tipo de homem ser?”. O pai que abandona? O marido que trai? O lascivo sexual que é assediador? O durão que não chora? O que passa pano dos amigos escrotos? O que se sente ofendido ao ser tratado no feminino?
Após muita conversa, demos um F5, desconstruimos a masculinidade frágil e fizemos um upgrade no conceito do que é ser homem. Com esse novo olhar muito mais leve e em constante construção, chamar Keise Oliver de ele se tornou algo gostoso e confortável, mas se um ‘ela’ escorregar da boca de qualquer pessoa ao se dirigir a ele, não tem problema algum, feminino não é ofensa.
É claro que essa não é uma receita de bolo, você vai ver pessoas trans que não admitem que troquem o pronome e precisamos respeitar, porque a identidade de gênero é algo íntimo, individual e por isso não podemos esquecer de perguntar “como você gostaria de ser chamade?”
Para aquela versão tóxica de heteronormatividade eu não volto, nem meu companheiro
Meu companheiro é mais do que um homem incrível, é uma referência para os meninos da família, um espelho a ser seguido e será um super paizão. Toda essa compreensão só foi possível porque eu também estou em transição, revisitei meu olhar ferido sobre o masculino e reconstruí minha própria versão do que é ser uma mulher hétero. Hoje, escolho me chamar de “mulher hétero trans”. De uma coisa temos certeza: para aquela versão tóxica de heteronormatividade eu não volto e meu companheiro, um homem trans hétero, também não volta mais.