Sidarta Ribeiro se tornou um dos mais populares cientistas do Brasil ao tratar de temas como sono, sonhos, memória e psicodélicos. Em seu novo livro, Sonho Manifesto, Dez Exercícios Urgentes de Otimismo Apocalíptico, publicado pela Companhia das Letras, fala sobre a importância do imaginário para vislumbrar futuros melhores (e possíveis!) e traz muito da sabedoria indígena e ancestral para o debate.
Uma pessoa pode manter hábitos adequados e, ainda assim, ter uma saúde muito ruim, porque mora em uma cidade poluída
Neurocientista, biólogo e escritor, Sidarta é autor de outros cinco livros, entre eles o best seller O Oráculo da Noite: A história e a Ciência do Sonho, de 2019. Fundador e atual vice-diretor do Instituto do Cérebro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ele tem tornado seu discurso cada vez mais politizado e mostra como o nosso bem-estar está diretamente relacionado ao planeta. “Já existe abundância de recursos para todo mundo viver bem. Precisamos nos organizar e distribuir melhor as coisas.”
Muitas vezes, pensamos o bem-estar como algo pessoal, atitudes de autocuidado. Mas como ele está ligado também ao bem-estar do planeta?
Esse é o grande enigma que está confrontando a humanidade. O bem-estar individual, numa sociedade que está em uma relação doente das pessoas com outras pessoas, das pessoas com a natureza, é uma coisa utópica. É possível se isolar numa bolha? Uma pessoa pode manter hábitos adequados, boa alimentação, exercícios físicos, bom sono, terapia e, mesmo assim, ter uma saúde muito ruim, porque está morando em uma cidade poluída, por exemplo. É o caso de praticamente todas as grandes cidades do planeta. A poluição pode causar câncer de pulmão, mesmo em quem não fuma. Enquanto a gente não resolver o problema da emissão de carbono, não vai conseguir ter saúde nas metrópoles, e a maior parte da população do planeta hoje é urbana. A pandemia deixou isso bem claro, a saúde do indivíduo é em função da saúde do coletivo. Quem achou que ia escapar da Covid porque tem mais dinheiro, não conseguiu. Na hora que o “bicho pegou” mesmo, quando ainda não tinha vacina, foi morte em todas as classes sociais. Pior para os mais pobres, claro, mas ruim também para a classe média e para os ricos. Precisamos compreender o ubuntu: “eu sou porque nós somos”. Estamos no mesmo barco, não existe forma de se isolar. Os bilionários, que estão achando que vão fugir do planeta, estão se enganado. É uma falta de compaixão deles que salta aos olhos, mas também é uma ignorância científica, porque não vai ser viável, não vão conseguir. Então, temos que cuidar do que temos agora, é preciso politizar essa questão no melhor sentido. A qualidade da água, a proteção dos mananciais, a poluição ambiental, a poluição sonora, tudo isso é um assunto político.
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Como os povos originários podem nos inspirar nessa busca?
De duas maneiras complementares. A primeira é bastante pragmática e diz respeito às tecnologias do passado. A agrofloresta, por exemplo. O cultivo de baixa intensidade, de milhares de anos, do passado da Amazônia. Porque a agricultura de monocultura, de vastos latifúndios, destrói a sociedade, destrói o solo. Tem outros exemplos, como a comida fermentada, uma coisa extremamente saudável, fácil de fazer em casa. Técnica milenar que hoje em dia aparece como grande solução para melhorar a qualidade da microbiota, reduzir inflamação, melhorar o humor e a digestão, um monte de vantagens. Temos muito o que aprender com os indígenas, tecnicamente e cientificamente, com a consciência e o conhecimento deles. Existem estudos mostrando que há muitos saberes, como o uso medicinal de plantas, que são conhecidos por uma única língua de um único povo. Por isso é tão importante proteger a população indígena. Mas tem uma segunda questão, que é a ética, o imperativo ético. Esses povos originários têm uma bússola moral para mudanças que a gente precisa promover no nosso jeito de estar no mundo. O pessoal que está lá fazendo novos pesticidas e novos explosivos não têm bússola moral, porque há um conflito de interesse com o capital. A gente não vai encontrar essa bússola moral coesa no capitalismo, que temos como base a competição a qualquer custo e está nos levando para essa crise. Por isso é fundamental a gente entender que temos na nossa mochila cultural os saberes necessários para atravessar esse momento perigoso, e eles não estão restritos às ciências, nem ao capital financeiro, vão muito além e dizem respeito a populações que têm um modo de vida mais antigo. São caçadores, coletores, nômades, seminômades que persistem numa experiência que se não fosse todo esse desenvolvimento do capital estaria dando certo numa boa. A gente tem que olhar para essa experiência com muito respeito. Precisamos resgatar a nossa melhor ancestralidade.
“Quando você satura os sistemas visual e auditivo com imagens e sons, qual o espaço resta para a imaginação?
Estamos vivendo um momento de hiperconectividade. Muito tempo de tela, consumindo muita informação. Como isso influencia o cérebro e o bem-estar?
É um momento bem perigoso, porque ninguém assinou um termo de consentimento livre e esclarecido para deixar as telas entrarem na nossa vida desse jeito. Elas entraram. Na nossa vida, na dos nossos filhos e netos. É uma coisa muito poderosa, porque todos os meios audiovisuais obedecem a lógica de captura da atenção. A tela piscando, mostrando imagens interessantes que não se repetem, num ritmo de edição cada vez mais rápido que faz com que o nosso cérebro fique o tempo todo em alerta. Duas horas de tela seria o recomendado, mas as pessoas estão se auto administrando oito, dez, doze horas. Ninguém quer parar. É uma doença que está obedecendo mecanismos ligados à dependência de drogas ou de qualquer coisa que é mediada por dopamina. O excesso é veneno. Precisamos ter muita autocrítica e reconhecer que não soubemos regulamentar essa questão das telas quando elas chegaram e agora a gente precisa fazer esse trabalho.
Como isso impacta na qualidade de vida, do sono e do sonhar?
Você tocou em um ponto central, o excesso de telas tem impactos em vários níveis. A falta de sono pode trazer problemas cognitivos, emocionais e hormonais. E impacta também no achatamento da experiência do imaginário. As pessoas estão deixando de ler, ouvir música, fazer teatro, conversar, jogar, brincar, para ficar na tela. Isso significa receber estímulos muito robustos, como os filmes, por exemplo, que são extremamente interessantes, com muito contraste, brilho, cor, som, tudo muito. Mas a imaginação, na verdade, se alimenta do pouco, da falta que serve de núcleo formador de um monte de caminhos de imaginação. Quando você satura o sistema visual e o sistema auditivo com imagens e sons, qual o espaço da imaginação? As pessoas estão ficando cada vez mais literais, menos metafóricas, menos capazes de fazer associações filosóficas e poéticas com aquilo que estão vivendo. Não por acaso tudo está ligado com a questão do consumo, com a questão política. Se as pessoas têm a capacidade de imaginação castrada, como vão inventar soluções para essa crise social ambiental?
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É também um momento de muitas tensões socioeconômicas. O Brasil voltou para o mapa da fome, por exemplo. É possível alcançar o bem-estar nesse contexto de desigualdades e carência de recursos essenciais como a alimentação?
Estamos diante de uma armadilha evolutiva, que é a persistência da competição mesmo na ausência da necessidade de competir. Porque uma pessoa que tem cinco bilhões de reais quer seis? O que está acontecendo no cérebro dela? De alguma maneira, ela sente que não é suficiente. Estamos acostumados a nos sentir em escassez desde sempre, mas nós não estamos mais em escassez. Essa é a natureza do nosso dilema, convencer nossos irmãos e irmãs, nosso planeta humano, que não precisamos mais nos matar nem competir, tem para todo mundo. Já existe abundância de recursos no planeta para todo mundo viver bem. Precisamos nos organizar e distribuir melhor as coisas. Mas isso é muito difícil, porque o dinheiro é visto na nossa sociedade como uma coisa que é boa sempre. Isso faz com que as pessoas que têm mais dinheiro não queiram compartilhar e aí olham para as pessoas que têm menos dinheiro como parasitas, quando na verdade quem está parasitando são os mais ricos.
Você é neurocientista e está com uma atuação cada vez mais social, propondo esse sonhar coletivo como uma maneira de nos politizar. Como as duas coisas convergem?
Sempre me envolvi com política, desde adolescente. Mas sou biólogo e não das humanas. Quando voltei ao Brasil, em 2005, já era o momento de grande construção do nosso sistema de ciência, tecnologia e inovação. Me envolvi na SBPC (Sociedade Brasileira Progresso da Ciência), onde fui diretor por dois mandatos – agora sou conselheiro. Fui cada vez mais participando da discussão de políticas públicas. Quando chegou a pandemia, me senti não só numa crise política nacional, mas numa crise política ambiental social planetária. Senti não, né? É o que aconteceu. E aí, isolado em casa, isso acabou me jogando nessa experiência de fazer um monte de live, entrevistas, de me expor muito mais do que eu me expunha antes. Só fui conhecer Ailton Krenak pessoalmente esse ano, mas, quando o encontrei por tela pela primeira vez durante a pandemia, ele me tirou do tempo completamente, me deixou sem saber o que dizer, porque eu estava vindo desse otimismo que a ciência traz, uma ideia de que “podemos resolver os problemas, temos como resolver a escassez, já acabou”. E ele vindo com o realismo que a experiência ameríndia [indígenas nativo americanos habitantes da América antes da chegada dos europeus] traz e sobre o risco de extinção dessas populações. Me fez pensar muito em politizar mais ainda o meu discurso. Agora, claro, sou cientista. Então, muito do que falo vem da pesquisa científica, de indicadores. Mas tem a pegada política, porque o momento exige.
“A gente não vai parar de sofrer, não vai resolver nossos problemas sociais e ambientais com remédios novos”
O que é otimismo apocalíptico?
Sempre fui uma pessoa muito otimista. Só que estamos num momento de urgência. Não temos mais vinte, quarenta anos para resolver os problemas que estão colocados, precisamos resolvê-los agora. As futuras gerações não vão ter condições de lidar com isso, a gente não pode delegar. Na pandemia, esse termo me pareceu adequado. A gente tem como sair dessa situação, mas não tem tempo para perder. Precisamos de urgência, estamos diante do apocalipse ambiental. Vivemos a sexta maior extinção de espécies do planeta, destruição de um monte de biomas, é a Amazônia chegando perto de um não retorno. Ao mesmo tempo, é também um apocalipse social. É como um navio que bateu num iceberg e está afundando: temos botes salva vidas, mas precisamos usá-los com rapidez.
Socialmente, vemos que a polarização sempre causa mais polarização. Mas é difícil pensar que o ódio do ódio vai acabar com o ódio, né? Quando o ódio tem função?
O ódio, a raiva ou a agressividade são adaptativos. Digamos assim, um animal que não é capaz de lidar com a agressividade não sobrevive. O problema é que estamos vivendo transformação de todas as divergências em relação ao ódio. A polarização em si não é um problema, faz parte do jogo. O cara vai lá assistir o Flamengo, o flaflu é polarizado. Ninguém é meio Flamengo ou meio Fluminense. Todo mundo é fla ou flu. O que é complicado é o cara querer matar o outro porque ele é de outro time. Mas isso tem sido insuflado intencionalmente por líderes políticos no planeta inteiro. Só que o ódio não vence o ódio. A gente precisa de respeito, de civilidade. Gosto muito de falar da palavra de Cristo, já que estamos em um país que se diz cristão, porque não tem absolutamente nada nos evangelhos que justifique esse tipo de atitude, pelo contrário, o grande diferencial do cristianismo é justamente a tolerância, partilha, perdão, humildade, frugalidade. Na contramão do que está acontecendo. As pessoas falam, “você não tem medo de se envolver em um debate político?”. Não tenho medo, tenho limites. Se eu perceber que a coisa vai sair do âmbito das palavras e das ideias e virar violência física, tô fora. Não tenho interesse em participar desse tipo de embate. Acho que a gente tem que lidar com isso não reagindo com violência, mas expondo publicamente esse tipo de atitude.
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Você faz muitas pesquisas com psicodélicos, como cogumelos e cannabis. Como é possível usar esses recursos da natureza para o bem-estar e conexão com o planeta?
O foco das minhas pesquisas nos últimos anos é em substâncias chamadas de psicodélicos clássicos, semelhantes a serotonina, como as substâncias canabinóides, que são extremamente poderosas para evitar uma série de transtornos e doenças patológicas, com uma aplicação específica na psiquiatria para lidar com transtornos de humor e ansiedade. É uma evolução científica e também cultural, no sentido de que muita gente demonizou isso por décadas e agora elas começam a entrar pela porta da frente na medicina. Mas não acho que esses benefícios vão acontecer na ausência de um aprofundamento do que significa viver em comunidade. A gente não vai parar de sofrer, não vai resolver nossos problemas sociais e ambientais com remédios novos – que, na verdade, são bem antigos, mas novos no sentido de que só agora a medicina se dispõe a aceitar sua utilidade. Remédios são bem-vindos, a simples entrada, por exemplo, do óleo CBD, da maconha, na farmacopéia da medicina é um fato bacana demais. Mas só isso não resolve o problema das guerras às drogas, que é uma guerra contra pessoas, principalmente negras, das favelas, pobres, que estão pagando o pato de uma política fracassada. A gente precisa de uma discussão mais ampla, porque senão pode correr o risco dessas substâncias serem aceitas pela medicina para tratar a classe média, os mais ricos, e os pobres continuarem a sofrer todas as consequências negativas da perseguição a essa substância.
De maneira geral, o que significa bem-estar para você?
Revivendo o respeito pleno de si e de quem está em volta. Respeito próprio, nas coisas básicas, não comer nem acordar apressadamente, não fazer muitas coisas ao mesmo tempo, viver num ritmo que respeita o prazer de viver. A gente acha que tem que fazer coisas demais e, no final, não faz nenhuma delas com prazer. Isso é falta de respeito com nós mesmos e com os outros. Não é possível viver bem em um lugar em que as pessoas estão passando fome, não têm acesso a água potável, não tem saneamento. Vai além do consumo, dessa adoração à mercadoria, ao “deus dinheiro”. Não produz plenitude, não produz transcendência, mas produz insaciabilidade, ansiedade. Quando as pessoas querem comprar alguma coisa, compram e imediatamente depois já não estão mais satisfeitas, querem comprar outra coisa. A gente precisa fazer uma crítica contundente disso. Essa consciência, de certa forma, é um jeito de fazer com que a gente possa imaginar um futuro melhor, de se conectar com essas possibilidades. Sonhar primeiro para depois construir.