Como a violência impacta saúde mental e afasta mulheres da política - Mina
 
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Como a violência impacta saúde mental e afasta mulheres da política

Tivemos um aumento de mulheres eleitas, mas o ambiente segue sendo hostil. Trazemos os depoimentos de Áurea Carolina, Manuela d'Ávila e Monica Seixas para mostrar como a política brasileira tortura as mulheres

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A partir de fevereiro, uma nova turma toma posse no Congresso Nacional e nas casas legislativas pelo país – e teremos um congresso um pouco mais diverso: a Câmara terá um aumento de quase 20% de mulheres, entre elas, pela primeira vez, três deputadas indígenas e duas travestis. Os números trazem boas notícias, claro, mas colocar mais mulheres dentro do Congresso não basta: é preciso garantir que elas possam exercer a função de forma segura e saudável. E essa ainda não é a realidade. 

A política impõe um dilema para as mulheres: cuidar de si e dos seus ou ocupar a cena pública

Mesmo com o ligeiro aumento em relação à diversidade de gênero, as mulheres, que são mais da metade da população, serão menos de um quinto da Câmara; no Senado, apenas uma a cada oito dos eleitos. O cenário é semelhante nas casas legislativas pelo país: em todas, as deputadas estaduais estão em minoria em relação aos deputados. Para se ter uma ideia de como o Congresso é pouco acolhedor para mulheres, até 2016 o Senado Federal não tinha um banheiro feminino e as senadoras tinham que ir até o restaurante anexo ao Plenário para fazer xixi. 

E, nos últimos anos, não nos faltam exemplos emblemáticos de violência política contra as mulheres: em 2014, a deputada federal Maria do Rosário ouviu do atual presidente da República Jair bolsonaro que sequer merecia ser estuprada porque era feia; em 2020, a deputada estadual Isa Penna (PCdo-SP) foi vítima de assédio sexual pelo colega Fernando Khoury, que passou a mão em seu seio durante uma sesão plenária; em 2018, a vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ) foi assassinada – crime que segue sem solução. 

Por todos episódios de violências física, sexual e psicológica, alguns nomes importantes da política institucional – e com grandes chances de reeleição, já que foram muito bem votados nas últimas eleições – decidiram não concorrer, entre outros fatores, para priorizar o bem-estar de si e de suas famílias. 

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É o caso da deputada estadual Erica Malunguinho, a primeira pessoa trans a ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa de São Paulo, a maior do Brasil: ela chegou a anunciar o lançamento de sua candidatura a deputada federal, mas logo anunciou a desistência da política institucional, pelo menos neste pleito. O mesmo aconteceu com Áurea Carolina (PSOL-MG), que foi a deputada federal mais bem votada de seu estado em 2018, e Manuela D’Ávila (PCdoB-RS), que já foi deputada estadual, deputada federal, candidata à prefeitura de Porto Alegre e candidata à vice-presidência da República. 

Mina ouviu duas parlamentares que escolheram deixar a política institucional e uma que quase desistiu, mas decidiu ficar, mesmo após uma série de agressões e um colapso emocional que a afastou de suas funções por quatro meses, em 2021. No relato das três, há pelo menos dois fatores em comum: o impacto da morte de Marielle em suas trajetórias e o aumento da violência política durante o governo de Jair Bolsonaro (PL-SP). 

Áurea Carolina: “É esperado que a gente sucumba. E eu me culpava por deixar isso acontecer” | Foto: Divulgação

Depois de ser a deputada mais bem votada de Minas Gerais em 2018, Áurea Carolina foi candidata à prefeitura de Belo Horizonte em 2020, mesmo ano em teve seu primeiro filho, em meio à pandemia de coronavírus, contra a qual àquela altura ainda não havia vacina. E tudo isso “vivendo contexto do governo Bolsonaro, que sem dúvidas foi o pior momento desde a redemocratização da sociedade para se estar na política institucional”, lembra. 

No ano seguinte, a deputada começou a se sentir incapaz de tocar o trabalho, com dificuldade para realizar tarefas simples, o que é um dos primeiros e mais comuns sintomas de burnout. A situação escalou até que teve um colapso emocional. Com ajuda da psiquiatra, entendeu que precisava se afastar do trabalho. “Tive um pouco de negação no começo. Pensei que só estava cansada, que precisava descansar, mas fui vendo que o quadro era mais complicado”. 

“E eu sentia que estava caindo na profecia da mulher negra que não consegue superar o obstáculo”

Tudo aconteceu exatamente na metade de um mandato marcado por violência política – especialmente após a morte de Marielle, em 2018, que “foi algo muito sensível para nós, mulheres negras, porque deixou muito claro que éramos os alvos preferenciais de grupos que não aceitam que haja uma mudança nas estruturas da sociedade brasileira”.

No exercício da função, foi vítima de racismo e machismo constantes, e de pelo menos um episódio de assédio sexual, que narrou em texto pulicado no livro Sempre foi sobre nós: Relatos da violência política de gênero no Brasil” organizado por Manuela D’Ávila (ed. Rosa dos Tempos, 2022): 

“Na ocasião, eu estava sentada mais ao fundo de um plenário de comissão quando um colega se sentou ao meu lado, puxou assunto e, sem mais nem menos, colocou a mão na minha coxa. Ele continuou falando como se nada tivesse acontecido, com aquela mão nojenta no meu corpo. Fiquei paralisada, incrédula, e tive a reação de empurrar a mão dele. Só consegui dizer que ele não podia fazer aquilo. ‘Isso o quê?’, ele dissimulou. Eu me irritei, abri o verbo, e ele respondeu que não tinha entendido, que eu estava louca, que ele não tinha feito nada”, conta, no livro. À época, a deputada decidiu não denunciar formalmente porque, em suas palavras, seria um “desgaste infernal”.

Áurea sentiu que permanecer no cargo era um desafio maior do que se eleger e se culpou pelo próprio adoecimento: “É esperado que a gente sucumba. E eu sentia que estava caindo nessa profecia, da mulher negra que não consegue superar obstáculos, e me culpava muito. Perguntava: ‘Como eu permiti que isso acontecesse?’”.

Embora passar diversos mandatos seguidos no congresso não estivesse nos planos de Áurea, o adoecimento mental certamente abreviou sua passagem por Brasília. Mesmo assim, não vê sua saída do parlamento como desistência ou fracasso: “Essa é a tendência, falar: ‘Olha só, mais uma mulher negra que fracassou’. Vejo minha decisão de não me candidatar como uma escolha consciente e finalizo meu mandato com o sentimento de missão cumprida”. 

Manuela d’Ávila: “Não houve um dia em que a violência não afetasse a minha família” | Foto: Divulgação

Há oito anos, quando saúde mental ainda não era um assunto discutido como é hoje, Manuela D’ávila já fazia terapia há tempos e decidiu deixar Brasília, onde viveu enquanto exercia dois mandatos de deputada federal (2007-2015) após um quadro de exaustão mental. Àquela altura, ela tinha sido a candidata mais bem votada de seu estado, o Rio Grande do Sul, mas optou por não continuar ocupando o Congresso na legislatura seguinte. 

Manuela diz que não teve um episódio específico de colapso, mas que a exaustão àquela altura foi resultado de anos de violências “altamente prejudiciais para a minha saúde”, que iam desde o apelido de “musa” do Congresso, dado pela imprensa, até ameaças de morte a ela e à filha Laura, hoje com 6 anos. 

“A violência contra as mulheres dá ibope, notoriedade, e ninguém é punido por isso” 

“Durante todo esse processo, sofri um nível muito intenso de violência política de gênero, e que foi crescendo à medida que crescia a extrema direita brasileira”. Em seu livro Sempre Foi Sobre Nós, Manuela diz ter aprendido, ao longo das oito eleições que disputou, que “a última é sempre a pior e perde apenas para a que virá”. E isso acontece porque “ninguém faz nada para mudar o cenário”, acredita.

“A violência contra as mulheres dá ibope, notoriedade, e ninuém é punido por isso. Quem foi cassado por distribuir as piores desinformações a meu respeito?”, questiona, lembrando, por exemplo, a informação falsa de que ela seria a favor da distribuição de mamadeiras eróticas para crianças do ensino público, replicada durante a campanha à vice-presidência, em 2018

“Em 2016, eu perdi em primeira instância uma ação contra uma médica obstetra que descreveu de forma absolutamente violenta todo o meu trabalho de parto. Acordei no dia seguinte ao meu parto com um post na internet relatando tudo o que tinha acontecido comigo no hospital. E o juiz disse que eu era obrigada a aguentar aquilo porque eu era uma pessoa pública”, conta. “Nunca existiu um dia na vida, nem na minha gestação, em que a violência não afetasse a minha família, especialmente a minha filha”. 

Depois de oito eleições seguidas na disputa disputando cargos legislativos ou executivos, Manuela D´Avila, um dos nomes mais expressivos do campo da esquerda, decidiu não concorrer em 2022. “A política impõe um dilema para as mulheres: cuidar de si e dos seus ou ocupar a cena pública. E, quando escolhemos a primeira opção, ainda é visto por muitas pessoas como fraqueza. Mas não quero ser uma heroína, eu sou só uma militante, como outras tantas, e quero continuar viva e saudável, porque sei que a luta é muito longa”.

Monica Seixas: “Expor o adoecimento emocional foi muito difícil. Achei que a política não ia me perdoar” | Foto: Divulgação

Há quatro anos, quando chegou à Alesp, Monica Seixas evita andar sozinha pelos corredores da casa – está sempre acompanhada de colegas ou de profissionais de sua equipe, treinados para começar a filmar a qualquer sinal de ameaça. A preocupação não é à toa: como outras parlamentares negras, ela teve o mandato marcado por agressões verbais e físicas, a mais recente delas em maio, quando o deputado Wellington Moura (Republicanos) disse que colocaria um cabresto em sua boca, em uma fala claramente racista.

Tudo aconteceu em plenário, foi gravado e chegou a ser tema de uma ação no Conselho de Ética, que absolveu Moura – mas, segundo Monica, as piores agressões acontecem fora do enquadramento das câmeras. Ela lembra que, depois da fala do cabresto, não conseguiu conter as lágrimas e deixou o plenário chorando, rodeada por cerca de 15 homens que gritavam com ela, com dedo em riste, proferindo ofensas como “louca” e “vai tomar seu Gardenal” [medicamento sedativo]. 

“A política do Brasil é insana e violenta, sobretudo para mulheres e pessoas negras”

Esse tipo de ataque, relacionado à saúde mental da deputada, se intensificou depois que ela tornou público que foi diagnosticada com transtorno de ansiedade generalizada, doença que a levou a se afastar do mandato por quatro meses, no primeiro semestre de 2021. 

A ansiedade começou a se manifestar ainda antes dela assumir o posto, em meio à tensão política de 2018, ano da eleição de Bolsonaro e da morte de Marielle, “uma grande companheira de partido, com quem convivíamos e que defendia pautas que todas nós defendemos”. 

Ela começou a sentir dores, taquicardia, dificuldade para respirar e muita dor de cabeça. Logo percebeu que os sintomas se intensificavam antes de falar em plenário: “Eu me sentia mal, vomitava, pedia para me levarem para o hospital convencia que ia morrer, que meu coração tinha parado. Os médicos não encontravam nenhum problema, mas eu continuava doente”, lembra.

Ainda assim, continuou se cobrando: “Não tirava folga, não descansava, nem durante a noite. Eu achava, e ainda acho, que o país está desmoronando e que as pessoas que eu prometi defender nas eleições – mulheres negras, indígenas, favelados – precisam mais do que nunca. Era um looping na minha cabeça, trabalho, trabalho, trabalho”, diz. “A gente se cobra porque sabe que os nossos estão em uma situação muito pior. Eu cresci num bairro pobre, minha família e meus amigos são pobres, e na hora do desespero me ligam para pedir ajuda. Durante a pandemia as pessoas me ligavam para pedir caixão”. 

Após a morte do pai, Monica sentou no sofá e não levantou mais. Teve o que chama de “grande crise” e finalmente tirou licença médica. Durante os quatro meses em que esteve afastada da Alesp, estava decidida a desistir da política e não tentar a reeleição ao final do mandato. 

“Expor o meu adoecimento emocional foi muito difícil. Achei que a política e os eleitores não iam me perdoar”, mas a licença média foi essencial para que retornasse ao gabinete pronta para seguir adiante e disputar outra eleição, em que acabou reeleita deputada estadual, desta vez no mandato coletivo Pretas, ao lado de outras quatro co-deputadas. “A política do Brasil é insana, violenta, sobretudo para mulheres e pessoas negras. Entendo completamente quem decide não continuar. Ninguém é obrigado a se violentar”.

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