Erradicar o ciúme é uma ilusão - Mina
 
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Erradicar o ciúme é uma ilusão

Uma das bandeiras de algumas das pessoas que praticam a não monogamia é a sublimação do ciúme. Para o psicanalista Lucas Bulamah, no entanto, esse seria um ideal higienista e inalcançável

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No que diz respeito aos temas do amor, família e relacionamentos, há uma tendência entre diversos grupos militantes que se pretendem críticos e, no limite, revolucionários, a purificar a realidade de elementos que poderíamos chamar de “sujos”. A monogamia, como exemplificada por discursos que vêm e vão periodicamente em posts nas redes sociais ou manchetes de veículos de debates, talvez conte hoje como a prática (estrutura e modalidade relacional, mais precisamente) mais condenada pelo juízo militante. Não apenas a monogamia, mas tudo aquilo que com ela se soma como práticas e discursos associados: a família, os gêneros, a dominação masculina, o patriarcado, a raça e a classe e o que mais for.

A reboque, o ciúme é possivelmente a chave mais explícita de rejeição dos afetos em jogo na estrutura monogâmica, apontando, conforme dizem, diretamente para a pretensão – do capitalismo introjetado na estrutura das nossas relações – de posse sobre o corpo do outro. Seria o ciumento aquele que, tendo constatado, no ser dito amado, a presença de outras ligações desejantes que não concernem a ele ou não o tocam de todo, irá reagir com angústia? Ou apenas aquele que irá atuar a partir da angústia no sentido de reivindicar mais controle na relação, mais proteção aparente contra a inaceitabilidade de que o desejo do outro é, no fim das contas, algo que o próprio outro controla muito precariamente?

O ciúmes não é algo contra o qual se imuniza

Creio que para iniciar este debate, devemos estabelecer que o ciúme não é algo contra o qual se imuniza – contrariando certa aura higienista de purificação de seres iluminados pelo pensamento decolonial –, mas um evento afetivo presente em todas as relações em que a consideração pelo outro está envolvida. Há muito, por exemplo, de sugestão de que nossa ética amorosa está enraizada na cultura romântica do casal (heterossexual cisgênero) como entidade superior na linha da vida de um ente. O que é verdade. 

O que não é verdade é que a sugestão de um ideal menos verticalizado, por exemplo a ética da amizade, sirva de substituto normativo para o ideal romântico de modo a eliminar o ciúme da cena do desejo que costura as relações. Da mesma forma que ocorre com a inveja, o ciúme é um dos precipitados dos primeiros experimentos infantis com o universo das dores e delícias dos laços amistosos/amorosos. Levante as mãos em protesto quem ouse dizer que crianças não sintam ciúmes de seus pares que arriscam ser mais “chegados” a outros.

O fato é que essa mesma ética em suas tessituras estruturais não está ausente da nossa própria subjetivação, quer se chame de capitalista, patriarcal, heterossexista ou o que o valha. Atentos então ao quanto a psicanálise chama a atenção para a ambivalência dos afetos, devemos reconhecer que o ciúme – para o próprio ciumento – sempre traz uma contraparte de desejo, e não apenas o desejo de eliminar o outro do campo desejante do ser amado para seu monopólio exclusivo. 

Por isso a ideia de compersão – que além de ser um vocábulo horroroso também é um ideal higienista muito estranho: este de se regozijar quando o ser amado se deleita com outros seres amados/desejados – nos parece tão bizarra. Não especificamente porque se contentar com o contentamento do outro seja impossível – obviamente não é –, mas porque ele tira de cena artificialmente a complexidade dos mecanismos desejantes do ciúme e do que nele há de agressivo, violento e também, sem contradições, de amoroso.

Erotizar, no ato e no verbo, o fato de que sempre irá haver um terceiro ao qual eu não conheço, não posso conhecer, mas permanentemente me servirá de rival, de limite externo para além dos muros que ilusoriamente cerco meus territórios amorosos parece um ideal bastante mais excitante e, enquanto novos mundos pós-revolucionários não forem constituídos, muito mais possível. 

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