Cuidados paliativos: um direito de todos para morrer com dignidade - Mina
 
Seu Corpo / Reportagem

Ter uma morte digna é um direito e faz bem pra todo mundo

A morte e o luto sempre foram tabus no Brasil e os cuidados paliativos passam longe da maioria da população. Mas pessoas e grupos têm mudado essa realidade para que o fim da vida seja respeitado, assistido e digno

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Em 2021, o Brasil foi considerado o terceiro pior país para se morrer no mundo. A pesquisa levou em consideração os cuidados que um paciente em situação de pré-morte recebe do sistema de saúde. A situação é tão trágica que ficamos atrás apenas do Paraguai e do Líbano em uma lista de 81 países. Mas existem pessoas por aqui tentando transformar essa realidade, oferecendo mais dignidade a quem sabe que está chegando ao fim da vida com cuidados paliativos.

“É preciso que todos entendam o cuidado paliativo como direito”

É o caso do enfermeiro Alexandre Silva, que, desde 2008, atua nas comunidades da Rocinha e do Vidigal, no Rio de Janeiro, capacitando moradores a atuar no cuidado paliativo de vizinhos que necessitem. “A morte nunca será algo fácil, mas torna-se ainda mais difícil e sofrida quando não existe a assistência para que aconteça com dignidade e respeito”, destaca ele, que também é professor da UFJS (Universidade Federal de São João del-Rei). Essa consciência é o que o motiva a seguir atuando nesse modelo que, mais tarde, descobriu ter nome: comunidade compassiva. Uma forma de criar uma rede de apoio a pessoas com problemas graves de saúde e seus parentes, já que o Estado não dá conta de atender a todas – apesar de ser seu dever.

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A dor social 

Hoje, a maior parte dos cuidados paliativos estão concentrados no Sistema Único de Saúde (SUS), que embora tenha se ampliado nas últimas décadas, continua inalcançável para 72,69 milhões de brasileiros (34% da população do país), conforme dados do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS). Alexandre define essa inacessibilidade como “dor social: se sentir incapaz de acessar aquilo que é um direito”. 

O sepultamento também pode entrar nessa conta. Para se ter ideia, em algumas regiões do Brasil, um funeral pode custar mais de duas vezes o valor de um salário mínimo, com despesas que incluem o caixão, a decoração e o transporte. Algumas cidades contam com políticas públicas que garantem a gratuidade do ritual para famílias de baixa renda e são acessadas por meio dos serviços de assistência social, mas Alexandre diz que poucos cidadãos conhecem esse direito.

Sabrina Corrêa da Costa Ribeiro, médica intensivista com foco de atuação em cuidado paliativo, acrescenta que muitos profissionais da saúde, principalmente médicos, têm dificuldade em reconhecer que um paciente está morrendo. Assim, muitas vezes, não conseguem estabelecer uma comunicação efetiva com ele e seus familiares. Essa tendência acompanha a própria população brasileira, que custa a conseguir falar sobre períodos de adoecimento, morte e luto. “O fato é que, se algum profissional de saúde fala que ‘não tem mais o que fazer’, aconselho procurar outro, pois você não merece ser cuidado por essa pessoa”, destaca Sabrina. “É preciso que todos entendam o cuidado paliativo como direito, uma qualidade de morte e de vida.”

“Um processo com dignidade para o paciente é um luto ‘melhor’ para a família”

Embora haja avanços do paliativismo no Brasil – em 2018, a prática foi aprovada e publicada no Diário Oficial da União –, Alexandre defende que “política pública não é só escrever no papel, mas saber quem vai financiar, qual será o fluxo e como será estruturado”. Ele reforça que o próprio trabalho da Favela Compassiva (que impulsionou a criação de outros grupos semelhantes em Curitiba, Belo Horizonte e São Paulo) não é um substituto do Estado e das políticas públicas, mas, sim, um elo de apoio complementar.

Por isso, o enfermeiro e a médica defendem que o cuidado paliativo funciona melhor quando iniciado precocemente. Ou seja, é necessário que a abordagem apareça desde a atenção básica à saúde, que é a porta de entrada para os serviços do SUS.

No entanto, Sabrina reconhece que existe uma desigualdade na distribuição da prática. Além das equipes de paliativistas estarem concentradas no eixo sul e sudeste do país, o número de profissionais é menor do que o total de pacientes com doenças avançadas. Um cálculo do IEPS estima que são necessários 236,9 mil profissionais, entre médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares e agentes comunitários de saúde, para que a Estratégia Saúde da Família (ESF) alcance 100% de cobertura no Brasil. 

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Tal realidade faz com que Sabrina tenha como prioridade ensinar habilidades paliativistas para médicos. “Qualquer profissional de saúde tem que olhar para o paciente como pessoa. Se depois houver necessidades mais complexas, ele será direcionado à equipe paliativista”, explica.

Embora ela acredite que o próprio conceito de dignidade seja entendido de diversas formas por cada indivíduo, existem abordagens universais. “A primeira é o controle de sintomas”, diz. “A morte é digna se assistida, estruturada, cuidada. Não existe fim de vida digno sem controles adequados”, enfatiza. Outro ponto é a validação da história de cada paciente. “O sofrimento parte de perspectivas diferentes, então, a grande questão da dignidade é respeitar o que é sofrimento para cada um”, acrescenta. 

Terapia da dignidade

Um dos aliados dos médicos paliativistas hoje é o testamento vital – também chamado Diretrizes Antecipadas de Vontade –, um documento no qual o paciente lista quais procedimentos ele permite ser submetido em caso de um quadro terminal. Para Sabrina, a Diretriz é essencial pois garante a autonomia do paciente. “Até termos esse documento, achamos que a prioridade dele é viver a qualquer custo, e, às vezes, isso não é verdade”, diz. 

Ter consideração pela família nesse processo doloroso é outro ponto de atenção. “Continuamos visitando os familiares depois que o paciente faleceu. O cuidado paliativo se estende pós-óbito”, explica Alexandre. Essa abordagem traz respeito para o luto. “Um processo com dignidade para o paciente é um luto ‘melhor’ para a família, ao contrário de um luto invisibilizado, de desprezo ou abandono”, complementa.

Uma das ferramentas utilizadas por Alexandre junto da equipe da Favela Compassiva é a terapia da dignidade, na qual a abordagem é uma espécie de construção de legado. “Terapia da dignidade tem a ver com fortalecer a pessoa da ‘pessoa da morte’. É comum associarem fragilidade a menos valia, mas não é verdade”, diz Sabrina, que também põe o método em prátca. “Controlar os sintomas, ter uma escuta ativa e uma comunicação efetiva são pré-requitos para uma morte digna. Nosso papel é resgatar a paz que o paciente pode ter perdido no processo do adoecimento. Isso faz parte dos direitos humanos”, finaliza Alexandre. 

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