“Quando é que a gente para de brincar com o corpo?” A pergunta de uma amiga ficou ecoando aqui dentro. O conhecimento acumulado em 9 anos estudando o comportamento das mulheres e meninas brasileiras me trouxe uma resposta rápida: a gente não pode parar algo que nem chega a aprender.
Se para os bebês e crianças pequenas o corpo é um grande brinquedo, as meninas logo cedo aprendem que seus corpos devem ser controlados e deixam de brincar de explorar o mundo e as sensações. Simone de Beauvoir, em seu clássico livro O Segundo Sexo já dizia que “tratam-na como uma boneca viva e recusam-lhe a liberdade”.
Quando foi a última vez que você experimentou algo novo com seu corpo?
Enquanto meninos brincam de descobrir o mundo com seus corpos, meninas ficam confinadas no lar. Esta foi a conclusão de um projeto de pesquisa do qual minha empresa, a 65|10, participou em 2016 em parceria com o Studio Ideia, que demonstrou que os meninos praticam esportes na rua 10% a mais que as meninas e seus pais acreditam três vezes mais que a prática esportiva é importante para eles.
Em casa, as meninas brincam de boneca, cuidam de crianças menores ou pior, são obrigadas a terem filhos frutos de violações contra seus corpos. Quem não brinca de casinha está cuidando da casa de verdade: por volta dos 10 anos de idade, 88% delas afirmam trabalhar dentro de casa, enquanto 76% dos meninos dizem fazer o mesmo (Gênero e Número, 2023).
Não aprendemos a ver nosso corpo como instrumento de interação com o mundo e nem a explorar as possibilidades de prazer que ele nos oferece – e aqui estou falando de sexo, sim, mas não só. Aprender a andar de bicicleta, começar a correr, dar uma cambalhota, pular de um trampolim. Quando foi a última vez que você experimentou algo novo com seu corpo?
Mulheres praticam menos esportes e são mais sedentárias que os homens. Ao escolher atividades físicas, muitas vezes somos motivadas por pressão estética e não por prazer, o que também se torna um fator de desmotivação ao longo do tempo. A interdição vem de longe: até o final da década de 70 as mulheres ainda eram proibidas de praticar diversos esportes no Brasil. Hoje não somos mais proibidas, mas também não somos incentivadas.
Brincar com o corpo é coisa séria!
Se tem algo que aprendi em tantos anos estudando as conquistas e lutas das mulheres é que tudo aquilo que nos é barrado é fonte de imensa potência. Descobrir que nosso corpo nos pertence e que podemos dispor dele como desejarmos é o primeiro passo para reivindicar o pleno direito de escolha sobre tudo que acontece com ele. É o caminho para tornarmos verdade o clichê do “meu corpo, minhas regras”.
O escritor Eduardo Galeano tem uma frase que eu amo e sempre repito: “A igreja diz: o corpo é uma culpa. A ciência diz: o corpo é uma máquina. A publicidade diz: o corpo é um negócio. E o corpo diz: eu sou uma festa.” Se no Brasil aqueles que festejam são chamados de brincantes, nossos corpos também dizem bem alto: eu sou um brinquedo. O que são as festas populares brasileiras se não um grande convite para jogar nossos corpos no mundo?
O documentário Tarja Branca defende que brincar é urgente e faz um manifesto sobre “a importância de continuar sustentando um espírito lúdico, que surge em nossa infância e que o sistema nos impele a abandonar em nossa vida adulta”. É através da brincadeira que entramos em contato com nossa criança interior e para as mulheres é a oportunidade de promover a cura e o resgate da menina que teve o corpo controlado, medido, pesado e confinado dentro de casa. Bora levar essa menina pra brincar lá fora?