A relevância da voz da quebrada no debate sobre o clima - Mina
 
Nosso Mundo / Reportagem

A relevância da voz da quebrada no debate sobre o clima

Conheça os ativistas das periferias brasileiras que marcaram presença na COP26 e entenda por que é importante reivindicar seu lugar na mesa

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10 minutos |

Por Patrícia Vilas Boas Agência Mural

Lideranças de todas as partes do mundo se reuniram entre os dias 31 de outubro e 12 de novembro em Glasgow, na Escócia, para discutir propostas de como conter o aquecimento global e retardar as mudanças climáticas, na COP26 (26ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), principal cúpula da ONU (Organização das Nações Unidas) para o clima. Mas como essas discussões afetam as periferias?

Este ano, o evento contou com ativistas das quebradas de São Paulo e de outras partes do Brasil que trouxeram para o debate questões como racismo ambiental, descolonização do sistema e justiça climática do ponto de vista de quem convive com esses problemas. A Agência Mural conversou com alguns deles sobre como as discussões globais afetam as periferias e a importância da participação nesse debate.

Impactos ambientais que marcam as periferias:

  • Enchentes na cidade
  • Falta de água
  • Risco à vida de populações que vivem em áreas de risco
  • Fogo nas áreas verdes que ainda existem
  • Aldeias indígenas presentes em ambiente urbano
Amanda vive na zona norte de São Paulo e aponta a necessidade de trazer os impactos das periferias para a discussão sobre o clima | Arquivo Pessoal

Entre os jovens periféricos que estiveram na conferência global, está a ativista climática Amanda da Cruz Costa, 24. Ela conta que até os 21 anos, não entendia muito bem o que era a crise climática e a importância de defender o meio ambiente. “Era muito distante da minha realidade, saca? Eu pensava que os ambientalistas eram os ‘abraçadores de árvores’”, conta. Um debate distante da sua realidade, mas com impactos sentidos de perto. “Sabe quando você está voltando do trabalho e o ônibus fica parado um tempão porque as ruas alagaram e não dá pra passar?”, questiona e dá outro exemplo, como o corte de água em fases de seca. “Quando a gente vai analisar questões territoriais, não era a água do Morumbi, ou da Faria Lima, avenida Paulista, que eram cortadas, é primeiro na quebrada”, afirma.

Moradora do Jardim Almanara, na região da Brasilândia, zona norte de São Paulo, ela passou a acompanhar mais o tema quando ganhou uma bolsa para representar a juventude brasileira na COP23, em 2017, na Alemanha, e encontrou um espaço onde não se viu representada. “O que eu via eram homens brancos, héteros, cisgêneros e ricos dominando a narrativa e se apropriando da minha vivência”, diz. “Eles falavam bastante sobre como a crise climática vem impactar os territórios vulnerabilizados, os povos periféricos, e aquilo me gerou esse desconforto”, relembra. “Perguntei para mim mesma: por que será que eu não estou com o microfone? Por que eles não me dão essa palavra? Percebi que se a gente não se apropriar dessa narrativa, outras pessoas vão contar a história e vão nos colocar um padrão ‘neocolonizador’.”

Como assim descolonizar?

O termo “neocolonizador” que Amanda comenta diz respeito ao processo de dominação política e econômica das grandes potências sobre países emergentes, como o Brasil. Descolonizar: quem também chegou com esse lema do sul global e das periferias para a COP26 foi o ativista Marcelo Rocha, 24, representante do Fridays for Future no Brasil. “Essa é uma COP para a gente levar nossas vozes, trazer posicionamentos justos”, diz o morador do Jardim Pirituba, também na zona norte da capital.

Nas periferias de São Paulo, enchentes são recorrentes, e a previsão é de que as mudanças climáticas agravem esses eventos extremos, cujos impactos serão mais sentidos nos espaços vulnerabilizados, de acordo com Marcos Buckeridge, diretor do Instituto de Biociências da USP (Universidade de São Paulo) e coordenador do programa USP-Cidades Globais. “O que acontece nas periferias é que esses são os lugares mais afetados por esses eventos, tanto os eventos extremos, quantos eventos crônicos”, diz, mencionando a questão das enchentes e a topografia. Ele dá como exemplo o fato de que muitas pessoas sem acesso à moradia adequada acabam construindo casas em regiões inclinadas, mais suscetíveis a deslizamentos, resultado de fortes chuvas e erosão do solo. “Eles ocorrem porque as periferias são onde o poder público menos atua do ponto de vista de fazer um planejamento estratégico para evitar que esses problemas ocorram.”

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Segundo o relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima), no qual Buckeridge colabora como um dos autores, estima-se que as atividades humanas tenham aquecido a terra 1,0°C acima dos patamares pré-industriais e, mantendo o crescimento no nível atual, a expectativa é de que chegue ao 1,5°C entre 2030 e 2052. O especialista explica que aquecimento global não quer dizer só o aumento da temperatura, mas também tem relação com eventos extremos, como ondas de calor e frio acima do normal, tempos de estiagem e outros de chuva em excesso, que trazem danos ao meio ambiente e, consequentemente, à qualidade de vida das pessoas. “Uma onda de calor pode chegar a 50°C, a essa temperatura, muitas pessoas podem morrer, principalmente pessoas mais velhas e muito mais jovens. Você tem um efeito sobre a saúde e sobre essa questão dos desastres.”

“A gente ainda está falando do direito a viver, do direito a conseguir respirar”

Para Marcelo, do Fridays for Future, o problema é ainda maior quando se olha para a questão social envolvida em todo o debate acerca das mudanças climáticas. “Quando a gente leva nossas vozes, a gente ainda está falando do direito a viver, do direito a conseguir respirar”, conta, ressaltando questões como a poluição, falta de água e construção de lixões e usinas de incineração nas periferias. “Ainda estamos lutando por dignidade humana, que é o saneamento básico, que é conseguir sobreviver.”

Favela Piracuama em 2018, no distrito do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo | @Léu Britto/Agência Mural

No ano passado, a Agência Mural falou sobre como o marco do saneamento afeta as periferias e o esgoto a céu aberto, cujo direito é garantido pela Constituição, mas não chega a todos, de acordo com a pesquisa do Instituto Trata Brasil em parceria com a FGV (Fundação Getulio Vargas). O estudo  mostrou que as periferias das grandes capitais têm menos rede de esgoto para suas populações em comparação com áreas centrais. Recentemente, o Conselho de Direitos Humanos da ONU reconheceu o acesso a um meio ambiente limpo, saudável e sustentável como um direito humano. A nova resolução foi considerada um “marco para a justiça ambiental” e contou com o apoio do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). “O mundo já entendeu que a gente está vivendo uma emergência climática, mas ainda não entendeu que dentro dessa tempestade estamos em barcos diferentes. Nós, enquanto populações periféricas, estamos no meio do oceano em uma jangada, e tem gente vivendo a mesma crise dentro de um cruzeiro”, diz Marcelo Rocha.

“O mundo já entendeu que a gente está vivendo uma emergência climática, mas ainda não entendeu que dentro dessa tempestade estamos em barcos diferentes.”

Amanda Costa, que além de ativista também é jovem embaixadora da ONU, concorda que os impactos do aquecimento global não afetarão a todos de forma igualitária e que as periferias já enfrentam muitos problemas decorrentes das mudanças climáticas. “Quando a gente pensa ‘Quem está na ponta? Quem vai sofrer os principais impactos?’, não é a pessoa rica da Faria Lima que vai ter a sua casa alagada por conta de enchente”, diz Amanda. “Vai ser a galera da periferia.”

Patricia Zanella aponta dificuldades sobre o tema nos últimos anos no Brasil | Divulgação

Formada em Relações Internacionais, Patricia Zanella, 25, membro do Conselho Consultivo de Jovens do Dia Mundial dos Oceanos e fundadora da EcoCiclo, acrescenta que ações individuais por si só não bastam. “A gente precisa de um governo que seja comprometido com a causa ambiental”, diz Patricia, que mora na Vila Rosa, bairro da zona norte de São Paulo.

Cenário no Brasil

O presidente da República, Jair Bolsonaro (Sem Partido), não participou da COP26, em Glasgow, mas deixou uma mensagem afirmando que o Brasil é “parte da solução para superar esse desafio global”. Para Patricia, não há mais no país “espaço para continuar perdendo mata, continuar aceitando indústrias que não possuem responsabilidade ambiental atuando e muito menos para uma educação que não aborda educação ambiental”.

O governo de Bolsonaro, assim como a gestão da pasta do Meio Ambiente sob seu mandato, tem sido marcado por escândalos relacionados à temática ambiental. Em abril do ano passado, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles declarou durante uma reunião ministerial que o período de pandemia deveria ser utilizado para ir “passando a boiada” em relação a mudanças nas regras ligadas à proteção ambiental e agricultura, uma vez que a imprensa cobria a crise sanitária. Salles deixou o cargo em junho deste ano.

De acordo com dados de satélite do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), no ano passado, a extensão de área desmatada na Amazônia Legal bateu um recorde visto pela última vez somente em 2008, com 10.851 km² desmatados em 2020, ante 12.911 km² treze anos atrás. No entanto, em discurso na Cúpula do Clima de abril deste ano, Bolsonaro se comprometeu a combater o desmatamento ilegal até 2030 e a zerar as emissões de carbono até 2050.

Novíssima geração do ativismo

Aos 17 anos, Jahzara Oná, moradora da União de Vila Nova, na zona leste de São Paulo, conta que desde os 8 anos está engajada na luta contra as mudanças climáticas. A motivação? Sua própria realidade.“Quando vi que o que estava passando era porque eu era mais vulnerável, que era (por conta do) racismo ambiental, da crise climática, eu resolvi lutar por isso, pelos jovens que aqui estão comigo.” Mencionado por Amanda Costa, fundadora do Perifa Sustentável, como um dos pilares de reivindicação do ativismo periférico pelo clima, o “racismo ambiental”, comentado por Jahzara, é um termo utilizado para descrever a injustiça ambiental dentro de um contexto racializado. 

“A crise climática vai impactar todo mundo, mas dentro desse escopo tem um grupo que vai ser mais impactado, que é o grupo (dos mais) vulnerabilizados. Ou seja, pessoas pretas, indígenas, quilombolas, ribeirinho”, afirma Amanda. “Não tem justiça ambiental sem justiça racial”.

Jahzara também aborda a “equidade intergeracional”, que é a luta pela garantia de que as futuras gerações tenham os mesmos direitos das gerações passadas em questões de acesso ao meio ambiente e à diversidade ambiental. Em outubro, a jovem ativista participou da pré-COP26 em São Paulo, evento promovido pela prefeitura da capital para debater temas e políticas ambientais que estariam presentes durante a conferência em Glasgow.

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