O poder de um pódio preto - Mina
 
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O poder de um pódio preto

Rebeca, Simone e Jordan: eu me vejo nelas, e isso muda tudo. Não é só uma medalha, não é apenas um recorde, é uma mudança de paradigma, é a referência que nunca tivemos

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Alguns podem dizer que é pretensão, mas quando olho para essas atletas fenomenais, me reconheço profundamente. Não sei dar nem uma estrela, mas me vejo na pele delas. “Os negros estão conquistando o poder. É muito bom escrever isso na história e servir de inspiração”, disse a judoca Bia Souza, a primeira mulher a trazer o ouro pro Brasil nessas Olimpíadas de Paris. A primeira mulher NEGRA. Sim, o pódio olímpico está ficando mais negro. E tá mais do que na hora da gente ver essa expressão como elogio. Negro, esse belo adjetivo carregado de inspiração e representatividade.

O amor-próprio é um escudo. E foi tirado de nós em um projeto para diminuir nossa força

Eu fui uma criança e uma adolescente negra entre os anos 90 e 2000. Cresci sem referências pretas em quase todas as áreas. Não me via nas minhas bonecas, nem nas apresentadoras de TV. Também não me vida nas minhas amigas de uma  escola particular, muito menos nas revistas e novelas. Onde estavam as pessoas que se pareciam comigo? 

Naquela época, não falávamos muito disso, e fazendo o que dava, tinha na minha família minhas maiores referências. Mas silenciosamente o mundo dizia que não havia espaço para meninas como eu. Era um silêncio ensurdecedor que tentava nos invisibilizar. Nós sempre estivemos nesses espaços, mas as ‘burocracias’ e ‘regras’ impostas dificultavam a abertura das portas e das oportunidades. Não foi diferente na ginástica artística onde mulheres negras estiveram lá ou quase lá, mas sem muita visibilidade.

É impossível não pensar nisso, é impossível não me emocionar ao ver Rebeca Andrade, empoderada com sua coroa de tranças (parecida com a minha) no pódio. Impossível não me encher de orgulho e esperança ao vê-la carregar o título de maior medalhista de todos os tempos. E me arrepio toda vez que vejo a imagem do pódio com três pretas e Rebeca no topo. Elas se curvam, eu me curvo e, espero, que o Brasil todo se curve. 

Quando vejo Simone Biles absoluta, com a pele tão retinta como a minha, me empodero. Quando lembro de Daiane dos Santos, a primeira a fazer história na ginástica artística pelo Brasil, levanto a cabeça. Elas são a prova de que somos excelência, sim. E, quando vejo, Bia Souza, trazendo o ouro esbanjando amor próprio em um corpo no qual me reconheço, daí eu me derreto.  

Se eu não amar meu corpo, quem vai?

Aprendi que a melhor coisa que poderia fazer por mim era amar meu próprio corpo”, disse Bia Souza numa bela lição sobre autoestima e aceitação. Eu também aprendi isso – e não faz muito tempo. Não foi nada simples e ver que tem gente no topo do esporte que tem uma história como a minha, faz toda diferença.

Sempre conto que enfrentei muitas lutas com o meu corpo. Já tentei encaixá-lo em formas nitidamente impossíveis de alcançar simplesmente porque parecia que era a única coisa a fazer. Eu queria ser ‘aceita’. Foram longos anos de batalha com a balança e com a minha mente até entender que sou linda no corpo que tenho. Eu, assim como Bia, sou grande, sou gorda, sou gostosa, sou preta. Você que torce o nariz: aceita que dói menos.

O amor-próprio é um escudo. E, assim como a autoestima, foi tirado de nós em um projeto regido pela escravidão para diminuir nossa força. Minar o autorespeito, o orgulho e o senso de beleza de uma pessoa é minar sua força e potência. Nunca foi por acaso. 

Imagina juntas! 

“Nunca tive uma atleta tão perto assim, isso definitivamente me colocou em alerta e trouxe à tona a melhor atleta dentro de mim”, disse Simone Biles, sobre Rebeca. E está aí mais uma lição poderosa para pessoas pretas: uma adversária pode tirar o melhor de nós e isso não significa que ela seja nossa inimiga. Ao contrário, é sororidade. Sororidade entre duas mulheres pretas que estão lado a lado no pódio, que se estimulam, se reverenciam e celebram.

Pra quem cresceu sem muitas referências pretas e, quando aparecia era apenas uma, ver um pódio com três pretas é alegria pura. Em muitos espaços fui a ‘preta única’, o que passa a mensagem de: “Ok, você pode estar aqui, mas só cabe você”.  Essa cultura fez com que muitos negros competissem entre si, o que reflete numa desmobilização do nosso movimento. 

Felizmente, isso está acabando ou ouso dizer que acabou. Existe sororidade e apoio, existe união e a premissa de que “uma puxa a outra”. 

“A gente está aqui para crescer, não só como atleta, mas como ser humano e para mostrar que a gente pode tudo, e que a cor não define nada”, disse Bia. Pois é, ainda temos muito o que caminhar, mas já demos os primeiros passos e nada vai nos parar. 

Por isso, eu só posso agradecer. Muito obrigada, meninas. Vocês inspiram toda uma nova geração. Meninas pretas que se reconhecem na cor da pele, na amizade e no respeito. Meninas que sonham com o pódio, com o sucesso, com  respeito e o amor. 

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