A nova epidemia que assola o Brasil: o vício em jogos de aposta - Mina
 
Nosso Mundo / Reportagem

A nova epidemia que assola o Brasil: o vício em jogos de aposta

Bets têm efeitos cerebrais semelhantes aos de drogas como o crack. Para sair dessa, tratamento médico, informação e rede de apoio são necessários

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“Meu marido acabou com o dinheiro da família, vendeu nosso apartamento, carro e entrou em uma dívida de 1 milhão e meio de reais por causa de apostas online”, ouviu a psicóloga Mirella Mariani da mulher de um paciente. Antes fosse esse o único caso que a especialista tivesse recebido nos últimos tempos. 

Mirella é supervisora do Pro-Amiti, Programa Ambulatorial do Jogo do Instituto de Psiquiatria da USP, setor do HC que oferece tratamento gratuito para quem sofre com o “Transtorno do Jogo”, dependência em jogos de apostas e sites de “bets” online. 

Desde que as apostas esportivas online foram liberadas no Brasil em 2018 pelo então presidente Michel Temer, o Brasil disparou no quadro de países que mais gastam dinheiro no setor. Em 2022, batemos o Reino Unidos e nos tornamos líderes do ranking mundial.

Segundo uma pesquisa do Datafolha, pelo menos 15% dos brasileiros já investiram em sites de bet. O gasto médio por mês é de R$263, e esta é uma atividade mais comum entre jovens (30% de quem aposta tem entre 16 e 24 anos), entre os homens entrevistados, 21% revelaram ter apostado, dentre as mulheres, 9% diz que já apostou. Em 2023, gastamos R$54 bilhões em apostas online. 

Sem regulamentação no setor e falta de conhecimento sobre os riscos envolvendo a prática, ela segue ganhando mais adeptos, afetando famílias e prejudicando o bem-estar da população.  

Como identificar o vício

Os jogos de aposta são muitas vezes comparados a drogas como o crack, por viciar e agir em áreas do cérebro que causam a dependência. No último Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), inclusive, o vício pelo jogo mudou de seção e passou a fazer parte da mesma categoria das drogas, do álcool e das substâncias em geral. 

Por causa da alta liberação de dopamina, os jogos viciam o cérebro e o tornam condicionado ao “circuito do desejo” durante uma partida ou uma aposta. Bets e jogos de azar usam estratégias como o reforço intermitente – recompensas aleatórias – e o sentimento de “quase lá” – quando você quase ganha, quando seu aviãozinho quase passa a marca anterior, quando a roleta quase completa o ciclo – para viciar ainda mais seus usuários. 

Mirella explica que existem “níveis” do vício: o primeiro jogador só aposta esporadicamente. O segundo é aquele jogador problema, que aposta com mais frequência e investe quantias regulares de dinheiro nas apostas. E o terceiro (e mais grave) é o jogador dependente, que preenche todos os critérios do Manual Psiquiátrico para Transtorno do Jogo. 

Para ser classificado um dependente, é preciso que a pessoa preencha pelo menos quatro critérios (ou mais) no período de 12 meses do Manual. São eles: 

  1. Necessidades de jogar com quantidades crescentes de dinheiro, a fim de obter a excitação desejada.
  2. É agitado ou irritado quando tenta diminuir ou parar de jogar.
  3. Tem feito repetidos esforços infrutíferos para controlar, diminuir ou parar de jogar.
  4. É muitas vezes preocupado com o jogo (por exemplo, ter pensamentos persistentes de reviver experiências de jogo passadas, fragilizando-se ou ao planejar a próxima aventura, pensando em maneiras de obter dinheiro para jogar).
  5. Muitas vezes, quando joga sente-se angustiado (por exemplo, impotente, culpado, ansioso, deprimido).
  6. Depois de perder dinheiro no jogo, frequentemente volta outro dia para recuperar perdas.
  7. Mente para esconder a extensão do envolvimento com jogos de azar.
  8. Colocou em risco ou perdeu um relacionamento significativo, emprego ou oportunidade de educação ou carreira por causa do jogo.
  9. Depende de outros para prover dinheiro para reviver situação financeira desesperadora causada pelo jogo.

Como reflexo da dependência, as vítimas começam a manifestar sintomas como depressão, ansiedade e – em alguns casos – pensamentos suicidas. Para se livrar do vício, Mirella recomenda a busca de ajuda de especialistas em saúde mental, terapia cognitivo-comportamental, medicação, prática de exercícios físicos e outras atividades relacionadas à liberação de dopamina, como encontrar amigos, ir ao cinema, ler, começar um curso e fazer outras atividades que, de preferência, sejam gratuitas. 

Como o caso relatado por Mirella, muitas vezes são os parentes da vítima que identificam os sinais de dependência. No Pro-Amiti, os familiares são convidados a participar do programa de remissão dos pacientes, e recebem tratamento junto com os dependentes. 

“É como dizem nos aviões, primeiro você veste a máscara de oxigênio em si mesmo e depois tenta ajudar o outro”, reflete a especialista. Um dependente não afeta apenas a si mesmo e causa problemas em todo um ecossistema familiar.

Ela reconhece o perfil de dois tipos de familiares, os que vitimizam o dependente, na linha: “nossa, eu preciso ajudar ele, coitado, ele não vai conseguir sair dessa sozinho” e acaba entrando em problemas financeiros junto com o paciente, e os que julgam e criticam o dependente: “já desisti dele, ele que se vire”, etc. 

Em caso de dependência, é importante que a vítima conte com uma rede de apoio estruturada para sair da situação. Vale lembrar que o córtex pré-frontal, região mais evoluída do nosso cérebro e ligada ao planejamento e à tomada de decisões racionais (que poderia frear o circuito do desejo e fazer a pessoa desistir de uma aposta, por exemplo), está em formação até os 25 anos de idade e por isso a especialista acredita que os jovens e adolescentes deveriam receber maior fiscalização dos pais e responsáveis legais ao fazerem uso de telas.

Por todos os lados

Tal “fiscalização” das telas, porém, não deveria ser responsabilidade apenas dos pais. As campanhas publicitárias e exposições constantes a propagandas e publicidades de jogos de azar é outra parte do problema que merece atenção. 

Contudo, ainda em 2024, dos 20 times da série A do Brasileirão, 19 são patrocinados por empresas do ramo das bets (segundo dado da Revista Exame). Sim, elas estão por todos os lados. De acordo com um estudo da XP,  as apostas movimentam 1% do PIB e comprometem até 20% do orçamento livre dos mais pobres em 2023.

Recentemente, o governo sancionou uma lei que regulamenta as apostas online, que até então não pagava impostos no país. Logo em seguida foi criada a Secretaria de Prêmios e Apostas, para fiscalizar e taxar bets esportivas. A ideia é arrecadar até R$6 bilhões em 2024. 

Junto com a pasta, o Governo definiu regras para mitigar o vício e o endividamento excessivo. Chamadas de regras do “jogo responsável”, as novas normas pretendem fiscalizar violações do direito do consumidor, propaganda enganosa, recompensas para atrair clientes e marketing de afiliados, as famosas publicidades feitas por influenciadores digitais, dos sites de apostas, impondo penalidades em casos de infração. 

A portaria instituiu também que, a partir de agora, os sites de apostas deverão impedir o cadastro de pessoas diagnosticadas com dependência e que terão que contar com uma ouvidoria para atender e orientar apostadores e familiares.

Para muitos especialistas da área da saúde, contudo, as medidas não são suficientes. Uma reportagem da Folha de São Paulo mostrou que das mais de 550 reuniões feitas pelo Governo para regulamentar as apostas no Brasil, 251 delas foram com representantes do setor de bets e só 5 foram feitas com órgãos de saúde. 

“Hoje, a gente nem sequer sabe quantas pessoas dependentes existem no Brasil, não há dados públicos para traçar uma política de prevenção”, disse Rodrigo Machado, pesquisador do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC) nesta mesma reportagem

Mirella relata que as buscas por ajuda no Pro-Amiti aumentaram consideravelmente no último ano e que o programa está trabalhando em capacidade máxima. Para ela, é preciso mais investimento na área, pois mais do que um problema de ordem econômica, este é um problema de saúde pública. “Infelizmente, não é em todo lugar que encontramos ações como as disponibilizadas pelo HC. Estamos buscando formar e informar outros profissionais da área, pois este é um problema de saúde pública”, acredita. 

Aliás, foi com ajuda médica e suporte do programa que o paciente citado no início do texto conseguiu se recuperar financeiramente, socialmente e emocionalmente depois do que perdeu com apostas, num período de dois anos. “Ele falou que nunca mais teria um lapso e eu disse para ele: ‘nunca diga nunca’. O comportamento de um dependente é pendular, e cabe ao paciente ficar do lado correto do pêndulo que o deixa longe da abstinência. E cabe ao terapeuta ajudá-lo a se manter desse lado”, defende a psicóloga. 

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