Os desafios e conquistas de viajar sendo uma pessoa preta - Mina
 
Nosso Mundo / Reportagem

Viajar sendo preta é criar possibilidades coletivas

Nossa repórter Estela Aguiar conta que embarcar no avião pela primeira vez aos 24 anos e estar na cidade mais preta do Brasil a ensinou ser vulnerável em paz

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Meu primeiro trabalho de carteira assinada foi numa seguradora de viagens. Eu tinha 16 anos. Atendia passageiros que embarcavam para os seus mais diversos sonhos e, em paralelo, tentava adivinhar quando faria uma travessia que não fosse a da Marginal Pinheiros, mas, sim, aérea. Era um sonho distante. 

Picada pela curiosidade que todo jornalista tem, sempre tive sede de conhecer o mundo e suas mais diferentes culturas, gastronomias, aventuras e costumes. E, de maneira inspiradora, lá estava ela, Glória Maria, fazendo isso na TV. Jornalista, negra, parecida comigo, destravava as milhares de fronteiras fazendo com que eu (e toda uma geração) pudesse sonhar com possibilidades.

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Já graduada e trabalhando como repórter, a possibilidade de viajar sozinha se apresentou. Passei três meses organizando uma temporada de 10 dias na Bahia, terra da minha família materna. Chorei ao comprar as passagens. Minha travessia, enfim, também seria aérea. Só de estar prestes a vivenciar essa experiência um leque se abriu mostrando que a vida ainda tinha muito para me apresentar. Sempre teve um pouco de Glória em mim. 

Eu não ando sozinha

Foi aos 24 anos que pisei pela primeira vez num aeroporto. Parece tarde, né?! Mas essa é a minha realidade e a de milhares de brasileiros parecidos comigo. Pretos, pardos e favelados. E, como em todo espaço novo, em um giro de 360º pude contar os meus semelhantes – eram poucos. 

Na conexão de Brasília para Salvador, entrei num avião gigante, com todos passageiros já sentados, pude observar que era uma das poucas mulheres pretas naquele lugar – detalhe, estávamos rumo à cidade mais preta fora da África. A sensação era de um não pertencimento, mas, ao mesmo tempo, sabia que estar ali era também ajudar a criar um imaginário para tantas outras pessoas negras, pardas e faveladas que virão depois – junto com as que vieram antes de mim. Eu não ando sozinha. Chorei novamente. 

Desembarquei em Salvador e desacelerei. Criada na favela do Jardim João XXIII, zona oeste da selva de pedras que é a cidade de São Paulo, pude assim entender o que é ter acesso ao lazer em sua plenitude. Finalmente me vi em um lugar de curtir sem culpa, sem que eu seja definida somente pelo trabalho, do quanto eu entrego, de não poder errar. E principalmente, um espaço bem diferente da zona oeste paulistana, em que não preciso olhar minha cara no espelho para ver outra pessoa preta.

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Entretanto, ao longo de toda viagem, vivi uma dualidade de sensações – o que imagino ser comum para outra pessoas negras. O desconforto do avião sempre voltava quando me atentava, nos pontos mais turísticos da cidade, na cor de quem se divertia e na de quem trabalhava. 

A falta de acesso à cultura, ao lazer e ao divertimento (somadas às estatísticas de violência, desemprego, vulnerabilidade social e insegurança alimentar) para pessoas pretas, pardas e faveladas são resultado de um Brasil com uma política escravocrata que perdura até hoje em suas formas mais perversas e sutis. Querem que nós nos vejamos somente como força de trabalho – e é aqui que o jogo precisa mudar – e está mudando. 

Potência no aquilombamento 

A minha viagem só foi possível por existir iniciativas como a Akaza, que tem como pilar uma hospedagem coletiva, itinerante e com valores mais acessíveis para pessoas pretas na Ribeira, bairro da cidade baixa de Salvador. Assim como existe também o Guia Negro, plataforma que realiza experiências turísticas em diversas cidades brasileiras, faz consultorias, produção independente de conteúdo sobre viagens, cultura negra, afroturismo e black business. 

Era tudo novo, ao mesmo tempo que ancestral

Antes de colocar os pés em Salvador, esta menina que completou quatro anos vendendo seguros de viagens se espelhou em mulheres negras que rodam o mundo. Josy Ramos e Jacy Carvalho em Nova Iorque, na África do Sul e em tantos outros destinos, sempre me deu a esperança de que um dia chegaria minha vez. E chegou: primeiro fiz a viagem nacional, mas a internacional virá em breve. 

Mais recentemente, conheci também uma menina ainda mais parecida comigo, Gabrielly Sadovski, cria da zona leste de São Paulo e exploradora do mundo. Também testemunhei, dentro da minha bolha, uma pessoa muito especial que foi passar mais de um mês na Europa. Poder ver alguém tão próximo de mim atravessando o oceano mostra o quanto o acesso ao lazer cria possibilidades coletivas.

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Autoconhecimento despachado

Estar em Salvador me permitiu me ver de outra forma. Não só como corajosa por viajar sozinha, mas por entender o quanto daquela cidade existe em mim. Tanto pela minha ancestralidade, que perpassa a minha família, quanto por me  reconhecer nas ruas, me sentir na minha quebrada. Eu estava em casa, mesmo que num CEP muito distante. 

Acessar esse lado de autocuidado, autoconhecimento e bem-estar me mostrou que a vida também pode ser leve de forma mais constante, que não sou as minhas cicatrizes e violências. Estar na Akaza com outras pessoas pretas, de diferentes gerações, e ver de perto os meus anciãos, me deu um afago de ver um futuro em que eu viva para além da sobrevivência, e que existe a possibilidade de contrariar as estáticas, como diz o Mano Brown. 

Trouxe a minha bagagem no peito e foi lindo desembarcar com ela em São Paulo

Pude pela primeira viver fora do caos por dias, sendo acolhida por outras pessoas negras, conhecendo lugares afetuosos, construindo memórias e pertencendo. Me vi vulnerável na paz, algo que nunca tinha acessado. Era tudo novo, ao mesmo tempo que ancestral. 

Essa viagem me ensinou mais sobre mim, me lembrou que também quero uma vida de novidades, como diz uma grande amiga, Marina Rosa, pois sou um corpo no mundo, como canetou Luedji Luna. Nós, pessoas pretas, não andamos sozinhas. Trouxe a minha bagagem no peito e foi lindo desembarcar com ela em São Paulo.

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