Tradicionalmente associado ao âmbito doméstico e desempenhado majoritariamente por mulheres, o cuidado é um pilar fundamental para a sociedade. Uma atividade invisibilizada e não remunerada mas que, como mostram os dados, representa um imenso potencial econômico e social. A gente só precisa explorá-lo. Quando um país reconhece o valor do trabalho de cuidado e o remunera, desencadeia uma série de transformações positivas. A cadeia é mais ou menos assim: ao transformar o cuidado em uma atividade profissional mais gente é atraída para o setor, o que gera novos empregos e impulsiona a economia ao mesmo tempo em que proporciona maior dignidade e bem-estar social para essa horda de cuidadoras. E os números não mentem.
O investimento nos trabalhos de cuidado pode criar 300 milhões de empregos até 2035
Segundo um estudo da ONG Oxfam, mulheres ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas, todos os dias, ao trabalho de cuidado não remunerado – uma contribuição que, estima-se, equivale a pelo menos US$10,8 trilhões por ano na economia global – mais de três vezes o valor da indústria de tecnologia. No Brasil, o cálculo estima que a remuneração deste trabalho equivaleria a 11% do PIB.
Dados do World Economic Forum mostram que o investimento adequado nos trabalhos de cuidado pode criar 300 milhões de empregos até 2035. “Se pensarmos que uma das grandes preocupações atuais é a substituição de pessoas por máquinas, o trabalho de cuidado não pode ser substituído tão facilmente e pode ser a fonte de renda de muitas famílias”, afirma Regina Madalozzo, economista e autora do livro Iguais e Diferentes: uma jornada pela economia feminista (editora Zahar).
Mas dá pra botar em prática?
Sim, e já existem alguns exemplos. O Uruguai implementou, em 2015, o Sistema Nacional Integrado de Cuidados, que reconhece o cuidado como um direito social. A iniciativa visa à profissionalização e à remuneração adequada dos cuidadores profissionais, além de oferecer suporte àqueles que cuidam de familiares em casa, por meio de formação e subsídios.
A Costa Rica também avança nesse campo, oferecendo cuidados subsidiados para crianças de até 6 anos, permitindo que mães e cuidadores possam trabalhar ou estudar. Portugal segue uma linha semelhante, disponibilizando subsídios e serviços de creches públicas e lares para idosos, aliviando a carga de cuidado não remunerado nas famílias. O governo também oferece apoio financeiro para quem cuida de familiares dependentes, uma forma de reconhecer e remunerar o trabalho de cuidado familiar.
Na França, 50% das crianças de até 3 anos estão matriculadas em creches públicas ou privadas subsidiadas. O governo também oferece políticas como o Complément de Libre Choix d’Activité (Complemento de Livre Escolha de Atividade), que oferece um auxílio financeiro a pais que reduzem ou interrompem o trabalho para cuidar dos filhos pequenos. Já a Suécia oferece 480 dias de licença parental para serem compartilhados entre pais e mães de recém-nascidos ou adotados, sendo que 90 precisam ser usados pelo pai, incentivando a divisão das tarefas e impulsionando a igualdade de gênero. Parte desse subsídio também pode ser transferido para os avós.
Na Nova Zelândia, eles querem ir mais longe. Existem propostas de equiparar não apenas a remuneração de homens e mulheres em funções iguais (igualdade salarial), mas também entre funções diferentes. Critérios como nível de complexidade técnica, horas de dedicação e carga de responsabilidade foram estabelecidos para determinar o valor dos diferentes trabalhos. “Dessa maneira, uma babá e um mecânico de avião, por exemplo, deveriam ter remuneração equiparada. Isso evita que funções ligadas ao cuidado sejam desvalorizadas por questões culturais”, explica Maíra Liguori, diretora da ONG Think Olga, que busca mobilizar a sociedade em prol da equidade de gênero.
“Considerar que esse trabalho é feito por amor traz a sensação de que não precisa ser remunerado”
No entanto, para que as iniciativas funcionem, é essencial que o valor do cuidado seja devidamente reconhecido. Quando consideramos que ele é feito “por amor”, muitas vezes temos a sensação de que a pessoa não precisa ser remunerada, como se a satisfação de cuidar fosse o suficiente, explica a economista Regina Madalozzo. “Ao entendermos que esse trabalho exige que abramos mão de outras oportunidades e que gera desgaste como qualquer função, passamos a dar valor e, consequentemente, a remunerar melhor quem trabalha cuidando.”
E o Brasil?
Para implementar políticas de remuneração do trabalho de cuidado no Brasil, é necessário abordar dois aspectos fundamentais, explica Maíra Liguori. O primeiro refere-se à valorização e remuneração de profissionais como enfermeiras, trabalhadoras domésticas, babás e cuidadoras, que são historicamente subvalorizadas devido às origens escravocratas do país. “A maioria dessas trabalhadoras são mulheres negras, que não por acaso ocupam a base da pirâmide socioeconômica. Ao normalizar o pagamento insuficiente ou nulo por esse trabalho, a sociedade perpetua ciclos de pobreza”, afirma.
A elevação dos salários dessas profissionais não apenas traria dignidade ao trabalho de cuidado, mas também teria um impacto direto na promoção da justiça social. Além disso, é importante garantir que essas trabalhadoras tenham acesso a benefícios trabalhistas, como licença-maternidade, seguro-desemprego e previdência. A efetiva aplicação das leis trabalhistas é um passo essencial para diminuir a precariedade.
O segundo ponto se refere ao cuidado intrafamiliar e comunitário, que é predominantemente realizado por mulheres (esposas, filhas, irmãs e netas), de forma não remunerada. No Brasil, as mulheres gastam o dobro do tempo que os homens em tarefas de cuidado, o que gera desequilíbrios significativos em termos de oportunidades de carreira, renda e tempo de lazer. Esse cenário limita o desenvolvimento profissional e econômico das mulheres e reforça a estrutura de desigualdade de gênero no país.
“A complexidade cultural e prática desse tipo de cuidado torna difícil estabelecer uma remuneração direta”, pondera Maíra. Afinal, como calcular esse valor? No entanto, uma solução viável e de impacto imediato seria promover uma distribuição mais equilibrada dessa função entre homens e mulheres. “Se o cuidado for visto como uma responsabilidade compartilhada dentro da família, em vez de uma tarefa feminina, poderemos ver mudanças significativas na forma como esse trabalho é valorizado.”
Com políticas públicas eficazes e o reconhecimento da importância do cuidado, o Brasil pode não apenas melhorar a vida de milhões de mulheres, mas também gerar empregos, impulsionar a economia e combater as desigualdades estruturais. O que nos resta é eleger representantes que se preocupem com essa pauta e pressionar para que mudanças aconteçam nesse sentido.