Partir do amor-próprio é fundamental na busca pelo amor
Inspirada por bell hooks e provocada por “Sex And The City”, Tatiana Vasconcellos faz um chamado a todas as mulheres que buscam uma relação: chega de tentar resolver o enigma do outro, é hora de agir a partir dos nossos desejos
Quando é que a gente vai rejeitar a prateleira do amor e pular dela? Em vez de esperar (e trabalhar e investir) para ser escolhida, começar a escolher? Quando vamos nos entender com os nossos desejos e passar a agir e amar a partir deles, em vez de fazer charme, joguinho, dietas e procedimentos estéticos para competir com outras mulheres enquanto tentamos atender aos desejos de quem escolhe (no caso, os homens)?
Esses questionamentos voltaram a aparecer quando mergulhei em mais um título da bell hooks, Comunhão – a busca das mulheres pelo amor (lançado em português em março pela Editora Elefante). Ela parte do entendimento de que nós, mulheres, somos ensinadas desde cedo a procurar o amor fora de nós, já que na cultura patriarcal não podemos determinar nosso próprio valor.
“Nosso valor, nossa autoestima e a certeza de poder ou não sermos amadas são sempre determinados por outros. Desprovidas dos meios para gerar amor-próprio, esperamos que os outros nos considerem dignas de amor; desejamos o amor e o procuramos”, ela diz. E assim “a maioria das mulheres vive com medo de ser abandonada, de não ser escolhida, de que, se pisar fora do círculo de aprovação, não será amada”. Então, passamos boa parte da vida procurando atender a critérios que correspondem aos desejos masculinos. E chamamos isso de amor.
“O movimento feminista não alterou a obsessão feminina por amor”
Para hooks, é justamente nesse ponto que o feminismo falhou. Ela diz que a igualdade entre os gêneros pode ter sido alcançada por muitas mulheres no que diz respeito a poder e dinheiro. Mas não ao amor. “O movimento feminista não alterou a obsessão feminina por amor. (…) Ele nos disse que seria melhor se parássemos de pensar em amor, se vivêssemos como se o amor não importasse, porque, caso contrário, correríamos o risco de nos tornarmos parte de uma categoria feminina realmente desprezada: a mulher que ama demais”. Mas aí, mais ou menos na metade da vida, depois dos 30, 40 passamos a entender o quanto o amor importa. A boa notícia é que, a essa altura, já vivemos o suficiente para largar para trás velhas versões patriarcais e começamos a buscá-lo em concepções mais profundas enquanto força transformadora de uma dupla.
Então, completamente dopada de bell hooks, comecei a assistir Sex and the City – desde o início e na ordem. Como boa parte das mulheres parecidas comigo, fui espectadora da série no começo dos 2000’s, quando tinha por volta dos 25 anos (e 10 mais nova do que as personagens) e idealizava pra mim uma vida parecida com a delas: meu apartamento, meus livros, meus escritos, minha família de amigas em volta de uma mesa e meus casinhos românticos. Agora, 20 anos depois (e 10 mais velha que elas), reparo em como a Carrie reproduz a cartilha da “síndrome da escolhida” na relação dela com Mr. Big.
Ela se pergunta: “O que mais eu deveria ter feito para ele gostar de mim, escolher casar comigo e não com uma mulher 10 anos mais nova?”. Ele diz que “não sabe” (eles nunca sabem), “mas de repente, tudo começou a ficar tão complicado…” Eu sei! Começou a ficar complicado quando Carrie passou a manifestar o que queria. Ela, então, se reconhece como selvagem e indomável, o que parece ótimo. Pena que isso aconteça em contraposição com outra mulher, “a escolhida”, num triângulo com um homem.
Amo Samantha debatendo climatério com as amigas e transando com quem quiser. Ela é o símbolo do ser desejante, se autoriza um comportamento que só é bem aceito se for desempenhado por homens: a liberdade sexual. E apesar de achar que ela e as amigas têm tudo, “bons apartamentos, bons empregos, boas amigas e bom sexo”, se sente solitária quando fica doente ou precisa de alguém que lhe ajude num reparo qualquer em sua casa. “Se você não tem um homem, você não é nada”, conclui.
Miranda, a advogada bem sucedida, se vê obrigada a mentir para conseguir transar (a que ponto chegamos!) Quando diz que tem uma profissão que a coloca em igualdade de poder com os caras, sente que os intimida e não pega ninguém. Daí resolve inventar que é comissária de bordo, apelando para a fantasia clichê e sem risco de ferir masculinidades frágeis.
Lá pela metade da série, me vejo desesperada e disparo em alto volume pro prédio inteiro ouvir: “Por que raioooos a Carrie sempre volta com o Big?”. Gente, ela estava com o Aidan, um cara disposto e interessado. Estragou tudo, porque não resistiu ao assédio do bonitão cafajeste e, veja bem, ca-sa-do, que a encurrala no elevador e depois diz que “está confuso”, “não sabe bem o que sente”. Ah, tenha dó!
Lembrei de um caso em que amigos héteros aconselham a amiga hétero a sumir por uns dias para que o homem com quem ela se relaciona se engaje emocionalmente. Por que achamos que um encontro tranquilo com um parceiro ou parceira bacana é algo tedioso? Por quais emoções buscamos numa relação? Quais emoções queremos provocar no outro? Insegurança? Desconfiança? Angústia? Uma outra amiga diz sentir que os caras estão regulando o mercado afetivo pela escassez, liberando intimidade a conta-gotas. Gente, a filosofia “farialimer” foi longe demais! Marketing da escassez para se relacionar não dá.
Viver um amor parceiro pode ser gostoso, mas a vida tem muitas outras alegrias, não se esqueça
Esta é uma das dinâmicas que podemos abandonar na busca pelo amor: resolver o enigma do outro. Quantas vezes não estivemos determinadas a ajudar um pobre homem confuso em seus sentimentos a fim de conquistá-lo achando que isso era amor? Quantas vezes homens não se apoiam nessa engrenagem emocional para manter mulheres por perto alimentando seus egos?
E se a gente priorizasse o amor-próprio, os nossos desejos e praticasse o amor com outras pessoas baseadas nesse autoconhecimento, como sugere bell hooks? A partir daí aprendi a detectar algo precioso e que pode ser o impulso motriz da transformação: DISPOSIÇÃO. Gente disposta é tudo! Homens honestamente dispostos topam viver. Ir vivendo, existindo e acertando as diferenças e as arestas na medida em que elas despontam de acordo com o funcionamento de uma engrenagem que abarca toda a complexidade que são duas pessoas. É bonito de ver (e ser) casais dispostos. Que se respeitam, se amam, gostam de estar juntos, e precisam lidar com ajustes desafiadores. Gente a fim, comprometida a se olhar o tempo todo e ir se reacomodando, porque aquela relação vale a pena ser vivida.
Aliás, essa é uma pergunta que deveria ser constante: ainda está valendo estar nessa relação? Porque viver um amor parceiro é muito gostoso, mas a vida tem várias outras alegrias, não se esqueça. Ao temer sair de um casamento ruim, violento ou infeliz por medo de não ser querida, nem desejada por mais ninguém, olhe para dentro em busca do seu autoamor. E lembre-se das suas amigas. Em Sex and The City, elas zoam umas às outras nos seus traços de personalidade mais acentuados e se apoiam na mesma medida. Me vejo e enxergo algumas das minhas relações de amizade mais íntimas ali. Tão diferentes, tão parecidas e, sobretudo, tão cúmplices. Tenhas amigas!