Saudade da internet marota, internet raiz
Nossa colunista está com saudade de interagir com menos gente, mas com mais atenção e profundidade. Porque, sim: um dia fomos mais pacíficos e menos beligerantes online
Sex and the City tá de volta. Lost tá de volta. Calça de cintura baixa tá de volta (não com a minha anuência). Até o Oasis voltou! Os anos 90/2000’s têm dado mesmo as caras em 2024. Menos aquela atmosfera. Não sei se é possível explicar em palavras, mas vou tentar.
Era uma atmosfera, mesmo, ali pelo começo dos anos 2000. Um clima, uma sensação compartilhada de que a popularização da Internet estava democratizando a informação de um jeito bom. Os scraps no Orkut eram o puro creme do amor. Mensagens bem humoradas de exaltação, amizade e admiração. Os textos no Blogger eram pretensiosos, divertidos, às vezes ruins, outras vezes talvez polêmicos. Mas as pessoas estavam ali, em comunidade, escrevendo suas ideias, seus sentimentos, suas impressões sobre o mundo. Aprendi muito sobre música, literatura e cinema nessa época. Era um espaço de conversa. Claro que surgiam tretas também. Mas, em geral, as caixas de comentários que eu frequentava eram abrigo de trocas de idéias civilizadas, respeitosas e engraçadas. Cê acredita que esse tempo existiu? É dele que eu sinto falta.
Existe um cansaço da incivilidade e da selvageria reinantes no mundo online atualmente
Toca The Killers no rádio, sou transportada imediatamente para um ano que mal sei numerar no começo desse século. Me vejo deitada no gramado de um parque num dia ensolarado – sou capaz de me lembrar do tom de azul no céu -, dividindo fones de ouvido de um discman com o cara de quem eu gostava. Me dá vontade de voltar a ter um blog. Saudade de quando a Internet começava a alterar nossa percepção de tempo e espaço, mas de um jeito bom. A gente passou a ouvir música do mundo inteiro na tela, conversar online com amigos que moravam longe, e a publicar numa página nossos escritos sobre dores e amores, alegrias e angústias, fatos corriqueiros do dia a dia, enredos de ficção. E a compartilhar com a nossa comunidade no digital.
Escrevo parte desse texto enquanto um amigo querido prepara uma sopa. Me dá vontade de publicar uma foto e escrever sobre o ato de amor que é cozinhar pros amigos. Mas qual a importância disso? Vai engajar os seguidores? Teremos opiniões polarizadas da audiência? Provavelmente ela vai se dividir entre os que amam e detestam sopa. Já vejo manifestações de #freesopa ou “sopa não é janta”, alguns vão citar a Mafalda, aquele auê. Outros vão apontar erros no texto, desqualificar e ofender a autora. Isso se não descambar pro ódio e pra violência. Por causa de uma sopa.
Ai, sabe, que cansaço da incivilidade e da selvageria reinantes atualmente. Preferia comentários tipo “que bonita essa amizade”, alguma provocação besta que terminaria em piada, ou até um link para um estudo sobre linguagem do amor, sei lá… Um clima mais pacífico e menos beligerante. Um dia fomos assim online, eu me lembro. É possível hoje publicar nas redes sem cair na lógica liberal da produção e dos números? Sem estratégia mercadológica na economia da atenção, sem pretender desempenho. Publicar só porque sim. É possível?
Aposentada do Facebook, nunca assídua do Linkedin, exausta do Twitter, com muito trabalho e uma pós graduação em andamento, cheia de livro pra ler, música para ouvir, filme e gente amada pra ver, nos últimos 15 dias aderi a três redes sociais novas. A que parece uma comunidade de blogs é a mais estimulante. Ainda não escrevi nada, mas já me sinto contente: encontrei gente da minha antiga comunidade digital, organizo os meus preferidos, faço a ronda por eles quando tô com tempo, posso ler devagar, na hora que eu quiser, posso fazer comentários tão ingênuos quanto inofensivos, enquanto toca o disco de uma banda do Sudão, descoberta de um amigo, no Spotify. Será que é possível emular aquela sensação ou estou sendo anacrônica?
Num mundo em que o que a gente escreve e posta é “conteúdo”, em que os “produtores de conteúdo” querem ser consumidos por muita gente, por milhares de “gentes”, por milhões de “gentes”, mesmo que não forem “gentes” e forem robôs, não importa, os números é que importam, quero inverter essa lógica e interagir com menos gente. Que esteja disposta a trocas e conversas, sob outras bases. Mais devagar. Com atenção. Em outra profundidade.
Veja, tento fugir do empoeirado “no meu tempo é que era bom”, até porque o hoje também é o meu tempo. E ele não é completamente ruim, claro. O Twitter, que virou X que virou um esgoto criminoso, foi suspenso no Brasil, prenunciando, quem sabe, tempos de convivências digitais melhores. O próximo passo fundamental tem de ser a regulação desse espaço. É possível?