Presa por topless, Ana Beatriz Coelho luta pela liberdade de seu corpo - Mina
 
Seu Corpo / Arquivo Pessoal

Presa por topless, Ana Beatriz Coelho luta pela liberdade de seu corpo

A produtora foi detida por deixar os seios à mostra em uma praia no Espírito Santo, mas antes disso encarou uma longa jornada de aceitação do próprio corpo e do significado que ele tem para o mundo. Sua história tem muito bullying e violência até chegar àquela delegacia

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Ana Beatriz ficou conhecida nacionalmente quando ganhou as páginas policiais. Foi detida e algemada por fazer topless em uma praia do Espírito Santo no começo do ano. O que não foi dito naquela ocasião, é que esse mesmo corpo, que ali se agarrava à sua liberdade, teve que passar por um longo e penoso processo de aceitação. Estar de peito aberto na praia e ser detida por isso, mostrou que o enfrentamento é o único caminho possível: “Até hoje meu corpo causa incômodo? Então agora eu quero incomodar mesmo”, diz. 

Mas não foi sempre assim. Ana Beatriz conta que teve uma infância e uma pré-adolescência complicadas. “Sofri bullying e muita violência. Apanhei de amigo, de irmão, de colega da escola. E essa violência era por causa do meu corpo”. Um corpo que não era desejado pelos meninos e era masculinizado demais para as meninas. Um corpo que era agitado por natureza e recebeu acolhimento nos esportes, que, aliás, não eram considerados “de menina”. Ana Beatriz passou um bom tempo no limbo de afetos. Saiu dele quando descobriu seu verdadeiro desejo e percebeu que, sim, poderia ser desejada: por mulheres.

Através de cinco fotos ao longo da vida, a moça do topless conta sua história e como chegou até aquela delegacia. Fala de sexualidade, aceitação, preconceito e desrespeito pelo que não cabe nas caixinhas pré-moldadas da nossa sociedade. 

Na infância, adorava as aulas aulas de dança, mas largou por causa do bullying

“A última aula de jazz”

Ana Beatriz conta que foi uma criança agitada e que gostava de fazer coisas radicais. “Eu me machucava muito. Tenho mais de 20 pontos ao todo na cabeça. Já quebrei algumas partes do corpo, me ralei e me ralo até hoje”, diz. Na foto, tinha 9 anos. E apesar do gosto por atividades agitadas, ela revela que sempre admirou a dança. Fez aulas de karatê e depois passou para o balé e o jazz. O dia da foto foi um dos mais marcantes da infância. “Eu estava dançando jazz e achava que estava brilhando, quando uma menina falou que eu era muito dura, que não sabia dançar e era muito magrela. Aquilo mexeu demais comigo. Nunca mais voltei às aulas e, pior, nunca mais dancei” . A produtora conta que só voltou a se arriscar na dança muitos anos depois, em uma boate em Berlim. Aquele foi o início de um longo período de bullying e agressões na escola, no condomínio e na família. “Eu acabei me enquadrando em grupos tidos como renegados porque não me encaixava exatamente em nenhum lugar e muito disso vinha dessa questão do corpo”.

Aos 14 anos (de braço quebrado), já praticante de skate, mas ainda usando brincos e colares

“A queda de skate e a regeneração da autoestima”

Aos 13 anos, Ana Beatriz começou um longo processo de mudança na autoimagem. A paixão e a habilidade natural para o esporte a levaram a praticar skate e futebol. Por ser boa em ambas as atividades, sente que passou a existir socialmente e ser selecionada para jogar nos times. Nessa fase que o bullying diminuiu, e por isso ela sente que o esporte foi fator essencial na mudança de sua autoestima. Na mesma época questões da sexualidade começaram a aparecer. “Eu não me enquadrava nem com as meninas porque eu era tida como ‘masculinizada’ e também não me encontrava muito com os meninos porque eu não era amiga deles fora do esporte, não gerava desejo neles. Por muito tempo vivi em um limbo”. Nessa foto, com o pulso engessado ela estava com 14 anos e lembra de se sentir um pouco mais livre, de começar a usar as roupas que gostava. Mesmo assim, ainda observa detalhes como a argola nas orelhas, que ela usava porque era o esperado de uma menina de sua idade. 

“Nessa fase me perdi um pouco”. Ana Beatriz se camuflava com vestidos para estar enturmada

“Fantasiada para ser aceita”

O estilo de Bia, que estava começando a se forjar no início da adolescência, não resistiu à pressão do ensino médio. Ela conta que tinha parado de andar de skate e passou um breve período tentando ser aceita pelo grupo dos populares da escola. “Eu consegui ser aceita por essa turma e isso fez bem para a minha autoestima, mesmo sabendo que nossos interesses eram muito diferentes. Mas quando olho para essa foto, não consigo ver quase nada de mim. Estava cansada da forma como meu corpo era julgado e usava sutiã com enchimento porque tinha seios pequenos e era chamada de tábua”. Ela gostava de roupas largas, camisetas de rock, piercing na sobrancelha. Mas nesse período renegou tudo isso: “usava franja, brincos grandes, colares. Me perdi um pouco. É como se alguém tivesse me vestido. Mas as pessoas me diziam que eu estava linda. As roupas ajudavam a camuflar um corpo que sofria bullying e não era desejado”. 

As pazes com sua forma vieram junto a uma descoberta da sexualidade. “Quando fui desejada pela primeira vez por uma mulher foi também a primeira vez que tive meu corpo desejado. As mulheres não tinham esse olhar que o homem têm de querer a gostosa, a bunduda, o peitão que eu não tinha. Foi só aí que entendi que podia ser sensual, que podia conquistar tendo a forma que eu tinha”. 

De cabelo raspado, na fase em que se despiu da feminilidade e se sentiu superpoderosa

“Quando se despediu do gênero”

Em 2015 Ana Beatriz percebeu que estava num processo depressivo. Tinha encerrado um relacionamento abusivo e sentiu que raspar a cabeça fez parte de uma libertação de camadas de violência que se acumulavam. Para ela, o cabelo ainda era uma das poucas coisas que representavam alguma feminilidade. “Quando cortei meu cabelo curto, passei a me achar mais poderosa e acho que isso reverberou. Inclusive chamava até mais a atenção de homens hétero. Me senti muito bonita. Meu rosto ficou ali exposto e naquele momento me despi do gênero. Hoje, raspar a cabeça virou um ato de renovação. Toda vez que passo por momentos densos eu raspo, entro em contato com as minhas cicatrizes e me sinto livre”, diz. 

Algemada a uma amiga na delegacia no começo do ano: foto que rodou o país

“O corpo incômodo”

A foto que rodou o país esse ano foi feita quando Bia chegou a delegacia, detida por fazer topless em uma praia brasileira e ficou algemada pelos pés a uma amiga. Ela conta que ouviu muita coisa que não deveria. “A amiga que estava comigo tem um corpo gordo e um dos homens falou que pelo menos ela deveria ter um peito bonito igual ao meu e não ficar mostrando uma teta caída” , conta. Ela lembra que ao chegar na delegacia foi colocada ao lado de um homem que estava  esperando para ser atendido, e esse homem estava sem camisa. Aquilo foi uma das maiores agressões. Mas ao mesmo tempo ficamos fortes porque  tínhamos muita certeza que nossos corpos não mereciam ser tratados daquela forma”, diz. O episódio da praia foi um impulsionador de sua auto aceitação. “Aquela criança violentada que eu fui tem orgulho da mulher forte que estava ali na delegacia. Até hoje meu corpo causa incômodo? Então agora eu quero incomodar mesmo. É um enfrentamento, uma liberdade da qual não quero abrir mão.”

Foto do dia em que foi presa, mas sem censura, como ela faz questão

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