Arquitetura de um silenciamento
Impactada pelo livro “Melhor Não Contar”, nossa colunista escreve a cultura que molda as mulheres para não falarem, não denunciarem e não conturbarem a paz de uma sociedade violenta e machista
Fiquei sacudida com o livro “Melhor Não Contar”, de Tatiana Salem Levy (Ed. Todavia), que fala de tanta, tanta coisa sobre ser mulher. Da relação de mãe e filha, de sexualidade, de luto, dos significados da escrita em diários, de paradoxos muito bons sobre o ofício de escrever, de violências que, em alguma medida, toda mulher já viveu, do tempo de entendimento das coisas.
Você tinha diários? Agendas em que registrava os acontecimentos da sua vida? Por que meninos não são estimulados a escrever diários? Lembrei de todos os meus, da releitura que fiz deles anos depois, das histórias de adolescente registradas ali e, claro, de todas as vezes que eu também “achei melhor não contar”.
É revolucionário que mulheres se vejam como aliadas e se falem. Decidam contar
Quantas vezes você ouviu de alguém ou concluiu que “era melhor não contar”? Quando o amigo do seu marido deu em cima de você, quando um parente te assediou, aquela vez que o professor pareceu inadequado e tocou seu corpo, quando o companheiro se excedeu e te bateu, quando o chefe forçou uma situação para encostar em você, todas as situações de abuso na adolescência, o homem se masturbando no parque, os olhares maliciosos, as conversinhas desconfortáveis com quem deveria ser brother…
Você já passou pela situação de descobrir que o companheiro de uma amiga a traiu? Eu já, muitas vezes, desde adolescente. O que você fez? Contou para a amiga? Eu contei.Vi casos recentes em que mulheres maduras descobrem que seus companheiros estão saindo com outras mulheres e avisam elas que (ops), ele se relaciona num esquema supostamente monogâmico. Ou o inverso: ficantes que vão checar se há indícios de que o cara está saindo com mais alguém e encontram… uma esposa (secreta). Coisas assim…
É revolucionário que mulheres se vejam como aliadas e se falem. Decidam contar. Porque é apostando no silêncio que homens se sentem à vontade para descumprir combinados em relacionamentos. É apostando no silêncio que homens humilham, batem, espancam, estupram, abusam de adolescentes ou cometem violência patrimonial.
Tem muita violência no segredo. É no segredo que violadores infantis camuflam seu crime, para que a criança não os delate. E muitas vezes, é no segredo que mora a vergonha da mulher, aquele retumbante “como eu pude acreditar?”. É no segredo que mora a culpa do “como eu não vi”.
Um estupro a cada seis minutos. As maiores vítimas são crianças de até 13 anos, dentro de casa. Como é que nossa vida segue normalmente diante desses números? Quantas dessas mulheres e crianças acharam “melhor não contar”?
Contar pode doer, mas ajuda a colocar as coisas em novos lugares
O silêncio feminino tem a ver com a cultura que prega que a mulher seja recatada, pacífica, discreta, leve e subordinada. Mulheres questionadoras são lidas socialmente como encrenqueiras. Então, é melhor não dar trabalho, não incomodar, mesmo quando se tratam de comportamentos inadequados, criminosos e violentos contra elas. “Deixa”, “não é pra tanto”, “perdeu a cabeça”… Melhor não contar.
Mas o silêncio pode matar. O segredo pode matar. Se não o corpo, a alma de uma mulher.
E por que a gente não fala? Por que não denunciamos? Porque conhecemos inúmeras mulheres que denunciaram seus agressores e durante o processo foram vítimas de novas violências, foram maltratadas por um sistema de justiça cheio de falhas e misoginia. Na nossa sociedade, existe um preço em contar. Mulheres assediadas moral e sexualmente por superiores, estupradas em balada por recém conhecidos, agredidas fisicamente pelos companheiros, perseguidas ostensivamente por ex-companheiros, golpeadas financeiramente. São muitos os exemplos, mais ou menos noticiados.
Infelizmente, perturbar a paz de quem nos violenta tem seu custo e “contar” é assumir o risco de sofrer ainda mais.
Que saída têm essas mulheres? Violentadas todos os dias, se decidem contar ficam desamparadas por quem faz e aplica as leis desse país. Se acham melhor não contar vivem assombradas por culpa e dor, pelo segredo, envergonhadas e traumatizadas.
Deve ser porque passamos muito tempo acreditando que “era melhor não contar” que custa tanto reunir coragem para finalmente despejar a verdade no mundo. O tempo das coisas, o tamanho das violências demoram para serem compreendidos. “É uma história muito íntima e pessoal, mas é a história de todas nós. Todas nós passamos por alguma dessas situações que o livro traz” me disse em entrevista na CBN a autora Tatiana Salem Levy sobre o que ouviu de outras mulheres que leram seu livro. “Nada do que acontece na infância tem nome“, diz a epígrafe, frase da escritora francesa Annie Ernaux, uma craque em contar de si.
Contar é uma forma de rememorar, de re-sentir e elaborar, de dar nome e significado para os acontecimentos. Contar pode doer, mas ajuda a colocar as coisas em novos lugares, dirimir incômodos, aliviar, libertar – a nós e também a tantas outras. Escrever é uma forma de contar. Ainda bem que Tatiana contou.