Bate até uma certa culpa em escrever que Martha é uma mulher fora do padrão, mas a verdade é que o meio artístico tem dessas crueldades e a atriz não foi poupada de nenhuma delas. No mercado há 25 anos e habitué de testes para novos papeis, Martha ouviu todos os absurdos que as décadas de 1990 e 2000 puderam produzir. Perdeu a conta de quantas vezes escutou que precisava emagrecer. “Hoje, olho as fotos e digo ‘nossa, como eu estava magra’. Mas para os produtores de elenco, eu estava obesa”, conta.
Com um sorriso largo e muita intensidade, Martha passou a vida driblando sua própria autocrítica, alimentada, claro, por padrões inviáveis. Até hoje, discute consigo mesma quando se questiona se deve mesmo sair de meia arrastão no carnaval. “Coloco a meia, tiro a meia, penso que posso e que devo. É todo um trabalho superar minha autocrítica. Mas isso não tira minha alegria de viver e me esforço pra não fazer disso um grande tema”, diz. Faz a mesma coisa quando bate a pouco proveitosa culpa materna.
Mãe de dois meninos gêmeos, Ben e Max, de três anos e meio, Martha resume toda a dubiedade que a maternidade traz: “Sinto tudo melhor e ao mesmo tempo muito mais difícil”. Seu desafio hoje é se livrar da carga mental, comum a muitas mulheres, e não cair na tentação de dizer “ah, deixa que eu faço”.
Numa entrevista sincera, onde conta sua história através de 5 fotos, a atriz fala dos momentos difíceis sem perder seu bom humor. E, quase 10 anos após escrever um texto sobre uma de suas maiores crises, o fato de ter uma bunda diminuta, revela: “Acho que minha bunda está envelhecendo bem”.
“Era difícil levantar a bandeira da inclusão na década de 80”
Martha passou cinco anos de sua infância em Paris, onde seu pai, Alexandre, foi fazer uma especialização médica. Na foto, está com as mulheres da família – menos Marina, a caçula, que não havia nascido ainda. Muito ligada a todas elas, Martha conta como cada uma a influenciou e ajudou a moldar a mulher que é hoje. “Tive duas avós muito fortes, ambas com limitações físicas, uma cega e outra com parkinson. Aprendi muito com isso, como tratá-las bem, sem excesso de proteção, sabe? Sou fã e apaixonada por elas e isso me fez gostar muito de gente mais velha”, conta.
Na foto, está sua avó Dorina Nowill, educadora e uma das maiores ativistas na luta pelos direitos das pessoas com deficiência visual no Brasil. “Ela é uma mulher extraordinária, que plantou tudo na base da perseverança. Batia na porta de todo mundo. Até um certo ponto da vida eu não entendia isso… Na adolescência, comecei a perceber, mas só fui me aprofundar quando fiz seu documentário”, relata. Em 2016, Martha fez o documentário Dorina – Olhar para o Mundo. “Hoje, a inclusão e o foco em minorias está bem mais em alta, o que é ótimo, mas na época dela não era assim. Era difícil levantar a bandeira de que uma pessoa com deficiência visual tinha direito ao mercado de trabalho e à escola”.
Martha conta que foi ainda vivendo em Paris que começou a se comparar com a irmã mais velha. “Por volta dos sete anos, comecei a ter uma espécie de deslumbramento com a Inês. Ela tinha um cabelo liso e loiro, eu achava ela muito mais bonita do que eu”, conta.
“Não queria esperar terminar o colegial, queria ser atriz logo”
O teatro apareceu na vida de Martha muito cedo, na escola, aos seis anos, mas marcou especialmente sua adolescência, trazendo uma sensação de pertencimento e liberdade durante uma fase conflituosa. Um pouco antes de mergulhar no mundo dos palcos de vez, ela sofria com as relações e o corpo. “Na fase dos 13, 14 anos, bem na puberdade, engordei e tinha um cabelo que não sabia muito bem como lidar, pra completar, usei aquele aparelho que saía por fora da boca. Eu ia às festas e nenhum menino me tirava para dançar. Era muito cruel”, conta.
Aos 17 anos, Martha decidiu estudar teatro, no ano seguinte, já estreou sua primeira peça profissional. Sua vida passou então a ser diferente da dos colegas, pois estudava de manhã e à noite enfrentava mais uma jornada no palco. “Não queria esperar terminar o colegial para começar; queria ser atriz logo. E foi ali que eu encontrei minha turma, todo mundo amava a mesma coisa, gostava de ler e de passar um sábado à tarde lendo uma peça. Aquela bolha me interessava mais”.
O teatro mudou muita coisa, inclusive seu jeito de vestir, ia para a escola sobretudo e com um cigarro na mão. “Eu amava a intelectualidade”, diz. Ela conta que gradualmente foi se afastando dos colegas da escola. “Eu transitava entre dois mundos, era como se tivesse duas vivências distintas com meus amigos mais velhos no teatro e depois com os mais novos fazendo prova de química. Era muito louco, muito bom por um lado e angustiante muitas vezes”, fala.
No começo da carreira, o maior desafio era equilibrar aquela sensação comum aos atores de que algo poderia não dar certo com a enorme satisfação da resposta do público. E passar pelos testes para papeis sempre foi um desafio pra autoestima. “Trinta anos de carreira e sigo sendo testada; agora já me acostumei. Antigamente, quando recebia um ‘não’, passava o dia arrasada no sofá em posição fetal. Hoje, o ‘não’ é absorvido muito rápido. Agradeço, lamento um pouco, e sigo em frente”, fala.
“Depois que a gente tem filhos, se não cuidar, a energia libidinal vai embora”
As mudanças no corpo que vieram com a maternidade aconteceram também internamente, com mudanças de paradigmas. “Ser mãe aumentou muitas camadas dentro de mim, deixou tudo mais complexo. Sinto tudo melhor e muito mais difícil ao mesmo tempo”, diz. As controvérsias estão sempre presentes, mas Martha garante que a culpa não é a tônica da sua maternidade. “É uma avalanche tão grande de responsabilidades que acabei me tornando mais dona das coisas, me sinto muito mais forte. Tem culpa sim, mas uso ela pra fazer uma autocrítica e pensar se estou fazendo tudo direito”.
Ela conta que, na gestação, seu corpo se encontrou. “Meu corpo aceitou a gravidez de maneira admirável, era como se a natureza estivesse me dizendo que estava tudo bem. Não tinha insegurança sobre ele. Já havia enfrentado tantos desafios que a vida parecia dizer: ‘Você vai ficar bem’”, conta Martha, que teve Max e Ben aos 40 anos, em um parto normal, ao lado de seu companheiro, Luiz Braga. Ela revela que um livro sobre esse período está em seus planos.
Hoje, os dilemas estão relacionados à divisão de tarefas e a conciliação com do trabalho com a maternidade. “Às vezes, ainda me sinto muito sobrecarregada. Meu parceiro é muito presente e nossa divisão de tarefas foi se equilibrando com o tempo. Antes, eu sentia que toda a carga mental e a organização ficavam para mim. E ainda me vejo naquele tipo de situação em que muitas mães dizem ‘deixa que eu resolvo’, vai?!”, conta.
No pacote de desafios, Martha coloca também a sexualidade do casal. “Sempre me lembro da personagem que fiz ainda grávida, ela gestava e fazia strip tease ao mesmo tempo, trazia muito do tabu da sexualidade da mãe. Depois que a gente tem filhos, fica ali com aquelas duas crianças lindas, tão tomados de paixão, alegria e prazer, que, se não cuidar, a energia libidinal vai embora, tem que prestar atenção porque é um desafio separar as coisas”.
“Acho que minha bunda está envelhecendo bem”
Antes de buscar um equilíbrio entre corpo e mente, Martha conta que deu uma radicalizada, negligenciou os cuidados com o corpo, parou de praticar esportes e desenvolveu uma amizade com a nicotina. “Teve uma hora em que entendi que precisava cuidar do corpo, da expressão corporal, da dança. Sempre tive altos e baixos”, diz. E nesse momento, a vida de atriz não ajudou muito. “Quando fui para o mercado de trabalho essa relação com o corpo virou um pesadelo. Hoje, olho as fotos e digo ‘nossa, eu estava magra’. Mas para os produtores de elenco, eu estava obesa”, diz.
Martha conta que em muitos dos testes que fez, precisava colocar biquíni. “Em um dado momento, tinha que mostrar a barriga. Escutei muitas vezes que eu tinha um rosto lindo, mas que precisa emagrecer”. A atriz acredita que muita coisa mudou, há realmente mais diversidade de corpos, mas a gordofobia segue viva, mesmo que nas entrelinhas. “Estou no mercado há vinte e cinco anos, passei por situações que atualmente não são mais comuns. Hoje, se alguém pedir pra uma atriz emagrecer pega mal, a não que seja do personagem, uma ferramenta. Mas ainda existe uma pressão no subtexto”.
Martha conta que mesmo com as mudanças em si e no mundo, ainda carrega as marcas da baixa autoestima na adolescência e das pressões estéticas da profissão. “Vou pro Carnaval de meia arrastão, mas não é totalmente resolvido. Coloco a meia, tiro a meia, tiro foto. Penso que posso e que devo… É um trabalho superar minha autocrítica, que é muito maior do que a crítica dos outros. Mas isso não tira minha alegria de viver e me esforço pra fazer disso um grande tema”.
Outro dia, ela refletiu sobre sua bunda relendo um texto que escreveu para a Revista TPM em 2015 e que repercutiu bastante na época. “A maternidade deu uma pequena diminuída nela e eu continuo não bem resolvida com esta parte, mas posso dizer que tô aprendendo a conviver melhor com ela. Acho que minha bunda está envelhecendo bem”. Martha conta de um momento de Todas as Mulheres do Mundo a marcou bastante e lá estava ela, sua a bunda. “Era uma cena que me pegava de costas andando pela rua, um take longuíssimo. Coloquei uma calcinha que modelava e depois me senti uma impostora por estar enganando as pessoas. Pensei ‘Pô, Martha, quarenta anos e ainda não aceitou?”, reflete.
“Uma boa amizade é um santo remédio”
O trabalho como Débora em Pedaço de Mim aborda a amizade entre mulheres e a complexidade da sororidade quando envolve laços familiares. “A Débora é uma personagem controversa por não ter estendido a mão [pra amiga abusada pelo irmão dela], mas ela tem humanidade e complexidade. Não estamos tratando o tema de maneira panfletária; é a vida como ela é, e o espectador não se distancia disso”, explica. Na vida pessoal, ela sempre teve relações muito profundas e fortes com mulheres, tanto na família quanto no ambiente de trabalho. “Tenho muitas grandes amigas e mulheres incríveis na minha família, como minha mãe e minhas irmãs. A noção de irmandade esteve presente desde muito cedo”, explica a atriz, que acredita haver uma combinação de sorte e esforço em ter cultivado boas amizades.
Ela conta que até os 30 anos, sentia que as amizades eram muito fortes. Depois, com filhos e responsabilidades, algumas se perdem. Mas como acredita que as amizades são fundamentais para o bem-estar, para a construção de vida e para a troca de amor, Martha é do tipo que vai atrás, tem DR e também faz novas amizades. “Acho tão importante ter amigos e esta troca de narrativa. Saber do outro é se distrair um pouco, é tão bom fofocar. Uma boa amizade é um santo remédio, faz bem para a saúde mental e física”.