Atletas da beleza e fraude por trás da “nossa melhor versão”
O duvidoso discurso, supostamente amigável, de que você deve “apenas” buscar sua melhor versão, já não disfarça a verdade
Vi, outro dia, alguns capítulos de uma novela dos anos 1980. Muitas coisas chamam atenção: linguagem, estilo de interpretação, moda. Contudo, o que mais salta aos olhos são os corpos. Cada um com seu jeito, formato, tamanho de peito, músculos definidos – ou não… A única coisa que todos aqueles corpos têm em comum é que são corpos normais, humanos e, sobretudo, imperfeitos. E lindos sobretudo nessa imperfeição.
Hoje os atores e atrizes encaram tudo que estiver disponível na prateleira da juventude e beleza eternas
A mocinha é um pouco corcunda, magra, mas com uma barriguinha localizada que eu acho sexy. Um dos galãs de 50 anos tem rugas, muitas rugas, e um pescoço que, hoje, seria definido como extremamente flácido. O braço da protagonista não ostenta nem um músculo e seu cabelo está longe de ser hidratado. Os rostos se mexem livremente movidos pelas emoções! Ninguém ali fez botox, preenchimento, harmonização, nada. São pessoas lindas cujas histórias de vida e seu tempo se inscrevem em seus corpos. São histórias e identidades definidas no lugar de músculos definidos. Veja bem: cada um faz o que quiser e é claro que existe uma busca de identidade em todas essas intervenções, mas é impossível para mim, uma dramaturga, não me maravilhar com corpos não polimerizados por tratamentos estéticos.
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Hoje em dia, muitas atrizes e atores enfrentam uma rotina intensa de cuidados com a aparência. São horas de academia, fortunas regulares no dermatologista, massagens diárias, drenagem, injeções de colágeno, de ácido hialurônico, pílulas e mais pílulas. Jejum de 16, 24, 72 horas. Isso para não falar nas intervenções cirúrgicas, fios de ouro, harmonização (ou demonização?), e mais horas e horas de yoga, cremes, aplicações, proteínas, queratinas e tudo mais que estiver disponível na prateleira da juventude e beleza eternas.
O duvidoso discurso, supostamente amigável, de que você deve “apenas” buscar sua melhor versão, já não disfarça a verdade: a busca da beleza hoje é uma questão de alta performance estimulada por um mercado de milhões. A melhor versão da pele, do cabelo, da bunda, do corpo… As pessoas que estabelecem esse padrão são atletas da beleza que investem tempo, dinheiro e todos os recursos em busca da sua “melhor versão”.
A beleza verdadeira inclui músculos movidos por sentimentos que deixam rugas na pele
Não sou contra qualquer tipo de procedimento ou comportamento, mas na esteira do atletismo estético de alta performance, os resultados colhidos pelos amadores são, quase sempre, frustrantes. Se não é o corpo que poderia melhorar, é o cabelo, se não é o cabelo que ficou a desejar, é o melanoma que piorou com o sol do último verão. E, de frustração em frustração, ficamos sempre em dívida com a nossa “melhor versão”.
E por quê? Porque não existe a melhor versão. Esse papo é uma balela! Balela de mercado. A beleza verdadeira é diversa e democrática, ela inclui músculos movidos por sentimentos que deixam rugas na pele. Nossos corpos podem contar sua história, de uma gravidez ou duas, de um acidente ou do que for. O Tempo é lindo e ele deixa pistas preciosas por onde passa sobre quem somos. Não precisamos apagar a história da nossa beleza. Afinal de contas, a sua única “melhor versão” é a que existe!