Você já se viu obcecada pelo passado amoroso de seu parceiro ou parceira? Já se pegou fuçando o instagram da ex-namorada da época da faculdade ou ficou azeda quando em meio a um evento de família sua sogra fez uma menção elogiosa à ex? Talvez, sem perceber, você esteja vivenciando a chamada “Síndrome de Rebecca”, um termo que pode soar estranho, mas descreve um sentimento que muitas pessoas experimentam e que, recentemente, vem crescendo uma vez que nossos fantasmas são impulsionados pelo fértil ambiente dos vestígios digitais.
Cunhado pelo psicanalista Dr. Darian Leader, o termo “Síndrome de Rebecca” se refere a um tipo de ciúme patológico que uma pessoa experimenta em relação ao ex ou aos ex de seu parceiro ou parceira. É aquele sentimento que vai além do ciúme comum, mergulhando em pensamentos obsessivos, pensamentos intrusivos, comportamentos de perseguição e até comportamentos compulsivos. É importante dizer que a Síndrome de Rebecca não é um diagnóstico oficial no DSM-5 (manual diagnóstico e estatístico feito pela Associação Americana de Psiquiatria), mas é um conceito cultural que nos ajuda a compreender comportamentos difíceis de serem nomeados.
O ciúme do passado é angustiante porque não há nada que possa ser feito para amenizá-lo
Essa síndrome faz referência ao romance “Rebecca”, escrito em 1938 por Daphne du Maurier, onde a protagonista é atormentada pela sombra da ex-esposa de seu marido, uma mulher idealizada por todos ao seu redor. É interessante porque no livro a mulher vai enlouquecendo, se sentindo inadequada, julgada. Em certo momento, o próprio marido confessa que seu casamento com Rebecca foi horrível. Ele a considerava uma mulher cruel e egoísta que manipulou todos ao seu redor fazendo-os acreditar que ela era a esposa perfeita. Ainda assim, a personagem central já está totalmente tomada por sua própria narrativa e o final não é muito feliz. Essa história virou um filme dirigido por Alfred Hitchcock em 1940 e, em 2020, ganhou um remake que está na Netflix, vale assistir.
Assim como na obra literária, quem sofre da Síndrome de Rebecca vive assombrado por uma figura do passado, que se torna um obstáculo para o presente. Mas, ao contrário do que se poderia pensar, essa obsessão não está necessariamente relacionada ao ex em si, mas sim ao que ele representa e também a uma sensação de que o passado jamais será apagado ou superado. Aqui penso que os ideais do amor romântico contribuem para a patologia pois alimentam a ideia de que os primeiros amores são os mais intensos e, muitas vezes, fazem com que nos coloquemos como “prêmios de consolação” de nossos atuais.
Mas veja, isso desconsidera totalmente que também tivemos uma vida amorosa pregressa e que, nem por isso, amamos menos intensamente esse parceiro de hoje. De qualquer forma, surge uma percepção de inferioridade que se agrava pela sensação de estar em desvantagem, alimentada por coisas como: “não compartilhei o passado dele”, “não conheci o pai que já faleceu”, “não estive ao seu lado nos anos faculdade” ou “não fui seu primeiro casamento”. Em vez de ver esses anos como experiências que moldaram a pessoa incrível que está ao nosso lado, e pensar que os anos deterioraram a relação e os fizeram terminar, acabamos nos fixando no que perdemos, reforçando nosso própria insegurança.
Esse ciúme do passado é desconcertante e angustiante por que efetivamente não há nada que possa ser feito para amenizá-lo. Diferente do ciúme de alguém do presente, onde você pode até negociar um distanciamento. No ciúme retroativo, só nos resta neurotizar a fantasia de que eles foram muito mais felizes sem nós e que nunca chegaremos lá.
Os especialistas comparam a síndrome de Rebecca com o TOC pois existe um comportamento obsessivo e compulsivo no quadro. Falando sobre a obsessão, os pensamentos intrusivos te atropelam e existe uma vontade ininterrupta de saber e re-checar detalhes do relacionamentos passado: Como a ex era? Do que ela gostava? Qual era seu signo? Sua personalidade? Pra onde eles viajaram? Como era o relacionamento do casal com a família e amigos? E o sexo? Por que terminaram? Essas são perguntas comuns para quem está preso nessa espiral de ciúme retroativo. Tudo dentro de uma lógica falha de que “preciso entender para me acalmar”. Para sanar essa dúvida a pessoa age de duas formas paralelas: faz perguntas frequentes ao parceiro, aos amigos e familiares e mergulha no stalking digital.
O perigo é que o ciúme retroativo pode ser transformar em uma profecia auto-realizável
Entretanto, essa busca incessante por detalhes se transforma rapidamente em um tiro no pé. Em geral, as pessoas que sofrem desse ciúme retroativo são excessivamente detalhistas: vão lembrar de absolutamente tudo o que o parceiro contar e ficam também atentas a mudanças da narrativa pra achar furos, como se eles fossem pegar o parceiro a parceira na mentira. “Não foi bem assim que você contou essa história… Então será que você tá me escondendo algo?” Pronto, já entraram no looping do ciclo vicioso do ciúme retroativo. Cada nova informação descoberta gera mais perguntas, mais dúvidas, e, consequentemente, mais sofrimento. Existe uma lógica paranóica e de viés de confirmação: “Não quero me acalmar, quero provar que ainda existe algo aí”. Assim, cada detalhe faz com que a pessoa crie uma nova história na cabeça dela, que cria uma nova angústia, que faz com que ela tenha que checar essa história que vai gerar mais um novo detalhe e por aí vai.
O parceiro, perdido em tantas perguntas, acaba hesitando entre revelar ou esconder detalhes, o que só aumenta a paranoia de quem sofre de ciúme retroativo. O que parece ser uma mentira, muitas vezes é apenas uma tentativa de proteger a relação de mais conflitos desnecessários.
Por que o ciúme retroativo está em alta
É interessante pensar que um livro de 1938 voltou a ser pauta nos EUA e na Europa. Isso porque o crescimento da Síndrome de Rebecca está diretamente ligado ao aumento dos rastros digitais, fartamente alimentados pelas redes sociais. Em um mundo onde é fácil stalkear o passado de alguém, cada foto, cada comentário, cada postagem antiga pode se tornar uma peça em um quebra-cabeça doentio.
Essa comparação constante com o ex não só é desgastante, mas também pode ser enganosa. Afinal, nas redes sociais, as pessoas tendem a compartilhar apenas os momentos felizes e idealizados de suas vidas. Isso cria uma falsa imagem de perfeição, que só alimenta ainda mais o sentimento de inadequação e insegurança.
Esse tipo de ciúme também é alimentado por uma sensação de inadequação e inferioridade. Não se sentir tão culta, tão rica, tão bem sucedida… No caso dos homens de nossa sociedade machista é comum a sensação de “não posso dar as mesmas condições financeiras”.
O perigo é que o ciúme retroativo muitas vezes se transforma em uma profecia auto-realizável. A pessoa começa a projetar suas inseguranças no relacionamento atual, criando uma narrativa em que ela é sempre inferior ao ex em questão. Esse comportamento faz com que a pessoa se afaste dos amigos e familiares do parceiro, acreditando que todos preferiam o ex.
Esse tipo de pensamento pode levar ao isolamento e, eventualmente, até ao fim do relacionamento. Afinal, é difícil para o parceiro lidar com alguém que está constantemente preso(a) ao passado, sem conseguir viver o presente de forma plena.
Terapia como aliada
O ciúme retroativo é um reflexo de nossos medos mais profundos. Ele nos mostra que, muitas vezes, estamos mais preocupados em provar nossa importância do que em viver o amor de forma plena. Ao reconhecer e trabalhar esses sentimentos, é possível transformar o ciúme em uma oportunidade de crescimento pessoal e fortalecer o relacionamento.
É fundamental entender que o ciúme retroativo não é apenas um capricho ou uma questão de insegurança passageira. Ele está profundamente enraizado em questões emocionais não resolvidas, como lutos mal elaborados e sentimentos de inadequação. A terapia pode ser uma ferramenta poderosa para ajudar a pessoa a lidar com esses sentimentos, permitindo que ela mergulhe em suas próprias questões e compreenda o que realmente está por trás dessa obsessão pelo passado.
Ao invés de focar no ex do parceiro, a pessoa deve aprender a focar em si mesma, nas suas inseguranças e vivências de desamparo e, também, na possibilidade de construir uma história feliz em seu relacionamento atual. É importante criar um repertório de momentos positivos e felizes com o parceiro, valorizando o que realmente importa: o presente.
Então, da próxima vez que você se pegar pensando demais no ex do seu parceiro, respire fundo e lembre-se: o passado pertence ao passado. O que realmente importa é o que você está construindo agora, no presente. E isso, ninguém pode tirar de você.