Amanda Soares tem 22 anos, é uma menina falante, de sorriso largo, cabelinho na régua, “criativa, potente, romântica e alguém que se aventura no mundo”, como ela mesma se define. “Mas isso amedronta as pessoas porque elas não estão acostumadas a ver uma pessoa com deficiência que não se contenta”, diz a influencer soteropolitana que compartilha sua rotina no perfil @arteamare. Prestes a se graduar em Letras na Universidade Federal da Bahia (UFBA), ela vive uma vida parecida com a de qualquer jovem brasileira.
Mas isso não é o que muita gente pensa – nem acredita – quando bate o olho nela. Isso tem nome: capacitismo. Ou seja, a discriminação contra pessoas com deficiência (PcD) baseada no pensamento de que alguns corpos valem mais do que outros por causa de sua capacidade intelectual, sensorial, mental, motora ou de produção. Hoje, 24% da população brasileira apresenta algum tipo de deficiência.
“As mulheres com deficiência são infantilizadas e não são entendidas como sujeitos. Isso precisa mudar”
Por isso, conta Amanda, ela levou tanto tempo para se reconhecer como mulher. Até se sentir como tal, se via apenas como os outros a enxergavam: uma pessoa com deficiência que carrega estigmas e estereótipos. “Quando se referem a mim apenas como uma fonte de inspiração ou como alguém que sofre e é sozinha (e é quase sempre assim) estão falando especificamente sobre a minha deficiência e não sobre quem eu sou”, diz. “Mas, se nem o Estado pensa que posso ser uma pessoa que transa, que pode gerar um filho, ser vítima de violências, imagina a sociedade? As mulheres com deficiência são infantilizadas e não são entendidas como sujeitos. Isso precisa mudar. Hoje, sei que a Amanda é uma mulher, é arte, é amor.”
Assim como faz Amanda, parte importante do trabalho da influenciadora, atriz, modelo e palestrante Tathi Piancastelli, 38 anos, é mostrar ao mundo o que é ser PcD – no caso dela, uma mulher com deficiência intelectual. Por meio de seu perfil, acompanhamos a rotina de uma mulher vaidosa, que vive sozinha, trabalha e no momento se prepara para casar com o namorado que, assim como ela, é uma pessoa com síndrome de down. No ano passado, Tathi atuou no monólogo – co-escrito por ela – Oi, eu estou aqui, no qual interpretou Ana, uma mulher lutando pelo direito de morar sozinha, de se formar na faculdade e de se casar.
Seu feminismo reconhece as mulheres PcD?
Formado por quase 50 mulheres, o Coletivo Feminista Helen Keller (nome em referência à ativista e escritora estadunidense que foi umas das primeiras surdocegas a concluir um bacharelado) tem como objetivo transformar as lutas, indagações e experiências de suas integrantes em uma pauta política para as mulheres com deficiência. A jornalista mineira Mariana Rosa, 45 anos, é uma das integrantes. Mulher com deficiência visual, mestranda em Educação e fundadora do Instituto Cáue, ela traz para a discussão a importância de tratarmos o bem-estar sob uma perspectiva mais coletiva e politizada.
“É preciso entender que boa parte das PcD no Brasil, por questões de classe e raça, são pessoas negras e pobres, o que implica também dizer que muitas mulheres negras estão exercendo o papel de cuidado. Então, não temos como pensar o bem-estar fora dessa moldura, uma vez que a experiência da deficiência é determinada pelo ambiente ao qual estamos inseridas e temos acesso”, explica Mariana. “A falta de acessibilidade, de solidariedade e interdependência faz com que a gente vá sendo deixada à margem das decisões, da pauta coletiva, da vida em sociedade e isso interfere diretamente no bem-estar ou na ausência dele”, destaca a jornalista.
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Fundadora do Movimento Vidas Negras com Deficiência Importam, Luciana Veiga, 29 anos, mulher negra autista, educadora popular e mãe de uma criança com deficiência, só recebeu o diagnóstico de autismo aos 25, o que, segundo ela, afetou sua autopercepção. “Só fui entender tardiamente que meu bem-estar – também um conceito político – dependia em parte de como eu me via e da aceitação do autismo. O bem-estar da PcD está intrinsecamente ligado a como a sociedade as lê”, diz. “O corpo da pessoa com deficiência é lido como um corpo não saudável, um corpo que precisa ser arrumado para que tenha bem-estar.”
“Passei a subverter a lógica do cuidado ligada à superação da própria deficiência”
Para Luciana, há uma linha tênue entre o que de fato faz mal para a pessoa com deficiência – o que às vezes é uma comorbidade da deficiência – e o que é apenas uma característica da pessoa e faz parte da identidade dela, de como se afirma no mundo e, portanto, não precisa ser consertado. Depois que recebeu o diagnóstico de autismo, uma chave virou para ela. “Passei a respeitar meus limites e a subverter a lógica do cuidado ligada à superação da própria deficiência e do esgotamento. Apesar do cuidado ser primordial para o bem-estar das pessoas com deficiência, é ainda visto como um favor. O cuidado não é profissionalizado. Não existe uma ética do cuidado. Para falar em bem-estar de pessoas com deficiência é preciso antes defender uma ética do cuidado, e não apenas do outro para comigo, mas também do autocuidado”, avalia.
Em seu perfil do Instagram, Thaís Becker, 28 anos, cadeirante e advogada, divide sua rotina de exercícios físicos, idas à praia, trabalho, livros, encontros e conteúdos sobre o campo dos Estudos Feministas da Deficiência, em que atua como pesquisadora. “O movimento feminista foi muito importante para alterar a forma de compreensão da deficiência. Os estudos feministas da deficiência passaram a tratá-la como relacional, ou seja, como algo que se dá no encontro do corpo com uma sociedade que foi estruturada de determinada maneira e que não acolhe as diversas formas de ver e estar no mundo, muito na contramão das perspectivas médicas”, diz. “Para mim, integrar um coletivo de mulheres com deficiência é muito importante para me entender enquanto pessoa com deficiência e enquanto mulher, e como essas duas categorias são categorias políticas”, completa.