Quer sobreviver? Escute as mulheres indígenas - Mina
 
Nosso Mundo / Reportagem

Quer sobreviver? Escute as mulheres indígenas

Em tempos de emergência climática é preciso voltar às raízes e escutar o que os povos originários têm a ensinar. Durante os últimos quatro anos Juliana se dedicou a viajar por aldeias de norte a sul do país e, aqui traz alguns dos ensinamentos que encontrou pela estrada

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Pouco antes de ir pela primeira vez a uma aldeia, em 2020, uma amiga disse: “nós, que vivemos na cidade, nunca voltamos as mesmas depois de pisar em território indígena”. Acreditei. Estava certa de que voltaria plena, agradecida pelas pequenas coisas da vida, quem sabe até vegana…?! Mas foi exatamente o contrário. 

Os indígenas de forma geral, mas principalmente as mulheres, possuem uma força extraordinária. Extraordinária, não: ancestral. Afinal, desde a invasão européia nas américas, os povos originários reivindicam o direito de existir. O que, claro, engloba o existir da terra, da água, dos animais e do ar. Temos muito a aprender com eles e isso vai além do óbvio, que é não desmatar e não poluir. Existe toda uma maneira de pensar e agir que pode e deve nos influenciar.  

“Precisamos estar atentas sempre e não dá para tratar todo mundo como inimigo”

De fato, nunca mais me tornei a mesma. E sigo em constante transformação, seja pisando na terra vermelha de Mato Grosso, nos rios do Amazonas, na caatinga do nordeste ou mesmo no asfalto quente de São Paulo. Mas a principal mensagem que levo no coração, que descobri ser um denominador comum em todas as etnias, é que somos muito mais fortes do que acreditamos. Só precisamos entender onde encontrar essa força. 

Em tempos de apocalipse climático, onde todos os especialistas indicam que a gente precisa aprender com os povos originários, escutar o que essas mulheres têm a dizer significa muito mais do que voltar pra casa com ensinamentos coletivos. Aprender com quem cuida da terra (porque se sente realmente parte dela) é, pra nós da cidade, a única possibilidade de sobrevivência.   

“Intuição é um saber ancestral que se esconde nos detalhes”  

Cicera Pankará, cacica, Pernambuco

“Sabe quando bate aquela sensação de que alguma coisa não está certa? Nessas horas é parar, respirar, se concentrar e prestar atenção no que você não estava enxergando”, diz a cacica Cicera Pankará. Para ilustrar o conselho, ela conta como lida com a própria intuição: há pouco mais de três anos recebeu mensagens dos encantados (antepassados e espíritos da floresta) de que era preciso reflorestar a região onde vivem. No dia seguinte ela convocou outras mulheres e crianças para plantar vegetação nativa da caatinga. No ano passado, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) detectaram pela primeira vez o clima árido na região da aldeia Pankará. “Não adianta apenas ouvir e ignorar, ou apenas reclamar. É preciso resolver”, diz. 

Cicera me explicou, enquanto fumava um cachimbo com jurema (planta considerada sagrada para muitas etnias e que faz ponte com o plano dos encantados), que as mulheres são mais intuitivas não apenas por conta do “sagrado feminino”, mas principalmente porque prestam atenção aos detalhes e são mais rápidas ao colocar a mão na massa. “Nós (indígenas) temos os encantados, que facilitam as mensagens, mas todo mundo tem intuição. O problema é que pouca gente ouve. É preciso parar para ouvir. Ouvir o que está do seu lado, ouvir o que tá dentro de você, ouvir o que está por vir”, conclui. Certeira!

“As palavras têm mais de um significado” 

Bel Juruna, vice-liderança, Pará

Segundo o dicionário Michaelis, o significado de progresso é “marcha para diante” seguido de “desenvolvimento considerável na tecnologia e em outras áreas que representem melhor qualidade de vida”. Mas, na prática, o que é progresso para um não é necessariamente progresso para outro. E isso aprendi com os jurunas, que sofrem com essa palavra quase que diariamente há mais de 10 anos. 

“Quando a hidrelétrica de Belo Monte veio para cá, os homens falaram que estavam trazendo progresso”, relembra a vice-liderança Bel Juruna, “que iriam colocar a gente numa casa de alvenaria, que a gente podia morar na cidade, que a gente ia ter saneamento básico.” 

O território onde os jurunas são originários, na Volta grande do Xingu, foi alagado por conta da construção do megaempreendimento. A escolha dos indígenas da aldeia Muratu foi serem realocados para a Terra Indígena Paquiçamba – e não para Altamira, nos chamados RUC (Reassentamento Urbano Coletivo). A Norte Energia, concessionária da hidrelétrica, financiou a construção das casas da aldeia, mas a vida nunca foi a mesma. 

“Que progresso é esse que agora meus filhos vivem de miojo por que não tenho tempo para plantar e cozinhar? Que gasto dinheiro para comprar uma fruta feia na cidade sendo que podia estar plantando? Que tive de mudar minha casa e minha família por conta de uma hidrelétrica, mas a minha conta de luz é caríssima. Que progresso é esse? O que é ‘qualidade de vida’ para essa gente?”.   

O mesmo vale por aqui, na cidade: não é porque algo aparenta ser bom para uma pessoa que vai ser bom para você. “Só a gente sabe o que é bom para a gente”, resume Bel. 

“Juntas a gente vai pra frente”

Adelina Ramos, presidente da Mapana e liderança Ticuna, Amazonas

Para chegar à aldeia Ticuna é preciso subir uma ribanceira bastante verticalizada, onde as raízes de plantas fazem o papel de corrimão. É preciso ter preparo físico, já que o “exercício” vem após a viagem de duas horas de barco que sai de Tabatinga. 

Após a subida, o visitante passa por cerca de 500 metros de rua asfaltada até entrar numa trilha bastante fechada. De lá pega-se uma ponte, como aquelas das Olimpíadas do Faustão, passa por um rio e aí sim chega-se às roças onde planta-se milho, mandioca, abacaxi e outra infinidade de frutas, folhas e vegetais. 

Só que a dificuldade no trajeto não chega nem aos pés da dificuldade que Adelina Ramos e as mulheres ticunas tiveram nos últimos anos. Elas tinham o seguinte impasse: de um lado, havia dificuldade de escoar a produção da roça, já que o acesso à aldeia -como relatei- era bastante complicado e os integrantes não davam conta de comer todo o alimento produzido. Do outro, na escola municipal da aldeia era servido de merenda macarrão, salsicha e suco em pó. “Isso não faz sentido”, pensou Adelina. E não fazia. 

Foi então que articulou uma forma de criar uma cooperativa para vender os alimentos para a escola, a Associação de Mulheres Indígenas Mapana e, com uma ajudinha do Ministério Público, foi validado que a comida de agricultores locais poderia ser vendida para as escolas da mesma região. A portaria se tornou nacional, mudando todo PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). 

“Nossos filhos se alimentaram melhor e, com o dinheiro da venda dos alimentos conseguimos contratar jovens para nos ajudar na aldeia, mandamos nossos filhos para estudar na capital e alguns já estão até na faculdade”, orgulha-se. “Mas isso só foi possível porque pensamos na aldeia toda. Não era só meu filho que estava comendo porcaria na escola ou minha produção que estava apodrecendo. Era o de todas nós”, diz. “Depois descobrimos que outras aldeias, em outros lugares, passavam pela mesma coisa. Por isso a união é importante”, diz. E alerta: “precisamos estar atentas sempre, mas não dá para tratar todo mundo como inimigo”. 

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