A peça Macacos, de Clayton Nascimento, é uma verdadeira aula - Mina
 
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Todo o poder da educação em uma peça: “Macacos”

Impactada pela peça “Macacos”, de Clayton Nascimento, nossa colunista fala sobre educação e as diversas versões da história criadas por um sistema racista e misógino

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É impossível pensar em outra coisa depois de assistir a peça Macacos

Só uma coisa existe: Macacos. A obra-prima escrita, dirigida e encenada por Clayton Nascimento é uma explosão teatral, histórica e social. A cena é plenamente ocupada por um exército, um corpo de baile, uma passeata de um homem só – Clayton Nascimento.

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O artista enfrenta três horas de batalha em cena, sem figurino e sem cenário. Seu diálogo cênico é suportado apenas pela luz e seu elenco é formado por membros de um corpo visivelmente treinado, organizado e propositivo. Clayton estrutura sua dramaturgia num paralelo ontológico entre a história do racismo no Brasil e a narrativa de sua própria trajetória. 

E que história é essa? 

De que forma Clayton Nascimento, como ele mesmo informa, filho de um pintor e de uma manicure, conseguiu se destacar dos marcadores sociais aos quais estava historicamente destinado? Estudando e estudando e estudando mais. 

Seus pais ouviram o sonho de um menino de 8 anos que queria fazer teatro. Conseguiram uma bolsa de estudos que durou 15 anos na instituição Casa Amarela, de onde Clayton sai decidido a renovar seus votos: ele quer fazer teatro. 

Agora ele quer a USP, a melhor da América Latina. Depois de quatro tentativas frustradas, em um processo seletivos que dura dois meses, sempre seguindo o conselho de seu pai de “perseverar”, Clayton entra na universidade. Com a mesma persistência, consegue entrar na EAD, “a grama mais verde da América Latina”. E baseado nessa mania (em grego “loucura”) de estudar e querer saber o porquê das coisas, Clayton faz o mestrado. 

Me emocionou ouvir a história de um artista negro que constrói seu caminho, livro após livro

A peça tem muitos momentos emocionantes e é possível ouvir a plateia fungar entre lágrimas transformadoras, quando o artista lê a carta de Teresinha de Jesus, mãe de Eduardo, menino assassinado pela polícia. Na carta, ela conta como viu o crânio de seu filho de nove anos, rolar sala adentro, arrancado por um tiro de fuzil. Teresinha e mais outra e mais outra… Contudo, nada me emocionou mais do que ouvir a história de um artista negro que constrói seu caminho, livro após livro, através de estudo e insistência, estudo e persistência, mais estudo e muita perseverança. 

Existem muitos exemplos de como estudar pode mudar vidas, mas Clayton Nascimento documenta em Macacos com arte e entusiasmo sua trajetória, deixando ilustrado de forma inconteste o poder transformador da educação. 

Em determinado ponto da peça, o artista-provocador transforma sua plateia em alunos de uma turma (ruim, a 5f). Agora, Clayton, investido de todo poder que os estudos profundos lhe deram, é o professor que nos alfineta com perguntas sobre a História do Brasil. Num jogo de espelhos, Clayton encena a sala de aula, palco e ferramenta de sua ascensão artística e social. A cada pergunta constatamos que somos mesmo péssimos alunos. Pior! Somos adestrados pelo sistema educacional, hegemônico, racista estrutural, misógino por natureza, para repetir o apagamento da história negra, da história da mulher e da história indígena. 

Ou seja, somos adestrados para apagar a nossa própria História. 

É nesse imenso buraco identitário do país, que habita em todos nós, que Macacos mete a mão. Uma mão que soca. Mão que se levanta em juramento de transformação. Mão que aponta para um novo futuro. 

Um futuro no qual só poderemos chegar passando pela sala de aula. Viva a educação! E viva Clayton Nascimento! 

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