Um encontro do Tinder cheio de perguntas não respondidas – por mim. Eu já sei que você vai perguntar o porquê de tanto mistério e, não quero mentir, mas temo te assustar. Dois Negronis e mergulhamos na literatura, dois Sazeracs e viajamos nas referências musicais, dois Viex Carrés e nos perdemos no cinema. Estranhamente, pedimos dois cafés e decidimos falar de viagens. Daquela que eu faria pra sua cama. E rimos.
Na casa (que agora é nossa) o sol banha o seu rosto e seus olhos verdes faíscam. Os cílios bonitos como uma moldura. Você me gira enquanto diz: “Café da manhã?”. Meu corpo se arrepia enquanto você tira a minha camisola devagar e beija os meus ombros. Sua pele tem cheiro de água cristalina e brisa fresca. Seu aroma exuberante me lembra patchouli e rum. O que encontramos um no outro não tem nome. Somos embalados pelo sonho, o seu toque me transforma. Esse prazer luxuoso percorre meu corpo e eu me abandono em você. Amo esse homem que me faz sorrir quando eu menos espero. E então me chupa; sério, dedicado. Eu me esqueço de tudo: dos boletos, da sacada escancarada, esqueço até de mim. Me jogo no desejo, esse o sentimento poderoso.
Sua casa tinha mesmo livros por todos os lugares. Você não mentiu – eu penso – talvez até os tenha lido de verdade. A vitrola começa a tocar Led Zeppelin, enquanto você me oferece água com gás. Ali eu já sabia que a gente iria casar.
“Agora me conta, Alice in Wonderland: qual a armadilha? Tudo tão perfeito…”. Por um segundo, me irrito. Por que tinha que ter algo errado comigo? Que comentário mais imbecil. Mas logo me lembro que esse é o mundo real e que nele as pessoas cometem erros, fazem idiotices, tropeçam nos imprevistos. Você era tão humano quanto eu, perdido em sentenças que já foram repetidas tantas vezes e, mesmo assim, encontram eco em nós.
Com o tempo e a vivência decidi que não tinha a menor obrigação de contar nada pra ninguém
O tempo pára e eu fico suspensa em pensamentos. Em segundos lembro de todas as estratégias que já criei pra contar a minha história: quando falei de cara pra já saber logo a reação do outro, quando emudeci e não disse nada e a uma rápida busca na internet acabou respondendo por mim. Teve também as vezes em que eu evitava informações que pudessem me identificar e as pessoas acabam achando que eu era fake.
Com o tempo e a vivência decidi que não tinha a menor obrigação de contar nada pra ninguém. Por acaso alguém conta pro outro tudo o que já fez? “Olha, já usei todas as drogas que você imaginar, já traí todas as minhas namoradas e falo sozinho”. Eventualmente, se a conversa viesse à tona, eu mencionava, mas não me deixei aprisionar pela minha história pregressa. Os homens mais inteligentes sabiam e não me diziam. Era um pacto, uma brincadeira de pega-pega que eu achava extremamente excitante.
Mas era você. E agora?
“Me fode” – eu suspiro, no auge do tesão. “Mas já?”, você sorri, enquanto tira a cueca. A gata mia, como se concordasse com a minha urgência. Você avança sobre mim. Sua pele quente arrepia a minha. Eu suspiro. Esse momento de tensão é inestimável e espero pacientemente pela realização do desejo porque o instante que o antecede não volta e viver o prólogo é tão excitante quanto o epílogo.
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Volto pra realidade. Você está em pé, esperando o que eu vou dizer. Em vez de me fazer de vítima, debocho de mim mesma. Sei que é sempre a melhor arma: “Fui puta, dizem que dei pra 3 mil homens, lancei 2 livros, dei entrevistas na TV e agora sou Sexóloga. E sim, é tudo verdade”. Essa é a prova de fogo. Você caminha sobre o fio da navalha das palavras. Contra todas as minhas expectativas, nem um músculo de preocupação se move. Abre o sorriso e me diz “Mas eu já tinha certeza de que você era mesmo uma puta mulher!”. Ufa! Você está salvo! Nós estamos.
Nunca nenhum homem havia agido assim. Sem pesar, sem pena, sem surpresa. O que eu havia dito era apenas a confirmação de uma sensação sua. De que eu era uma mulher incrível e… pessoas incríveis têm história. Usei uma forma dramática de te contar porque era um teste. E, se pude testar seu amor muitas vezes depois disso, foi porque ali, fiz a coisa certa.
Naquele momento, eu senti que não havia bagagem, nem informação privilegiada, nem bola de ferro nos pés. Estávamos despidos daquilo que éramos e também do que havíamos sido fora daquela casa. Éramos apenas eu e você. E todas as vezes que nos amamos foram assim. Uma confirmação da nossa vulnerabilidade e, por isso mesmo, uma entrega absoluta.
Tudo que eu fui
Você me pega devagar, mas determinado e me olha de perto. Seguro seu cabelo e aperto suas costas contra o meu corpo. Me sinto preenchida por você, como se milhões de pequenas flores desabrochassem por todo o meu corpo. Meus olhos se abrem muito e eu mal consigo respirar. O ar quente que passa pela minha garganta só aumenta a tensão. As pontas dos meus dedos formigam. É como se houvesse uma rede elétrica ao redor dos nossos corpos. O suor mistura nossos cheiros e a pele gruda, num frescor amendoado, macio. Minerva nos observa, de cima da penteadeira, enquanto se lambe “Mais um dia normal nessa casa…”
Quando ele sussurra no meu ouvido que vai gozar, eu também estou pronta e sinto meu corpo vibrar em consonância não apenas com o orgasmo, mas com tudo aquilo que sou. É sim a pequena morte de que falam os franceses, a morte de tudo o que eu fui antes daquele momento. E o que pode ser de mais belo do que a chance de viver tantas vidas quanto escolhermos?
Qualquer homem que tente nos categorizar reduz a migalhas o banquete que podemos ser
E assim, eu pude contar tudo sem contar nada, sem pormenorizar os mil detalhes de mulher múltipla que todas nós somos. Eu fui aquela e ela continua comigo, mesmo que transmutada. Ele também foi outro que continua por aqui de alguma forma. Somos iguais nas nossas diferenças e nosso sexo é a celebração da liberdade de podermos ser fieis a nós mesmos. É um alívio poder ser eu: uma mulher desejante, intensa, cheia de capítulos. Nosso gozo é a afirmação de que eu não aceitei migalhas de homens que sempre tentaram me categorizar, que me aprisionavam e fodiam, não a mulher, mas a fantasia que existia na cabeça deles e que não tinha lugar no mundo real.
A equação machista e banal que afirma que mulheres devem ser damas na sociedade e vadias na cama não tem aplicação alguma em nenhum meio de que se tenha notícia.
Qualquer homem que tente nos categorizar reduz a migalhas o banquete que podemos ser e eu afirmo, com a experiência de quem já se esbaldou em miolo de pão, que a entrega do desejo só é plena quando você pode se vestir de você. Não existe nada mais profano e mais sagrado do que se despir do mundo junto daquele com quem escolhemos estar.
* Gabriela Benvenutti é sexóloga, escritora, devoradora de livros e dona das suas vontades