Estamos todos viciados? - Mina
 
Nosso Mundo / Reportagem

Estamos todos viciados?

Nunca fomos tão expostos a substâncias químicas e a estímulos de recompensa. Mas antes de se desesperar, é importante entender o que é vício

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Onde quer que olhemos, vemos cabeças abaixadas e mão ocupadas com telas. Em todas as festas que vamos, cigarros eletrônicos são acesos. Substâncias ilícitas voltaram a ser consideradas cool e jogos de azar, que antes exigiam a ida a uma casa de apostas, agora estão a poucos cliques de distância, disponíveis o tempo todo no bolso. Parece que nunca tivemos tanto contato com itens viciantes; será que estamos todos viciados?

Para a psiquiatra Anna Lembke, autora do best-seller Nação Dopamina, “o vício é a peste moderna”. Em passagem recente pelo Brasil, quando palestrou no Fronteiras do Pensamento, em São Paulo, em setembro, ela explicou que atividades prazerosas liberam dopamina, mas, com a repetição, o cérebro reduz essa produção, causando um déficit crônico. Isso nos deixa inquietos e leva a buscar mais estímulos para voltar aos níveis normais de dopamina, como assistir a mais um vídeo do TikTok, alimentando o ciclo de dependência.

Não existe um perfil único de dependente, nem uma predisposição específica

Mas existe uma distância entre a busca intensa por prazer e o vício em si. “A dependência ocorre quando uma pessoa não consegue estabelecer limites para o uso ou repetição de algo, levando a um processo de adaptação do organismo a esse algo. Na busca constante pela mesma sensação que já experimentou antes com aquilo, ela aumenta a dose”, explica o psiquiatra Henrique Bottura, presidente do Instituto de Psiquiatria Paulista.

Os vícios mais comuns incluem álcool, jogos eletrônicos e de azar, medicamentos, drogas ilícitas ou lícitas, o uso de celulares, impulsos sexuais excessivos, amor e ciúme patológicos. A boa notícia é que há tratamento para todos esses casos.

A culpa é dos pais?

A ciência aponta uma correlação importante entre dependência e fatores genéticos. Uma das pesquisas mais famosas sobre o tema foi feita pela Universidade de Fudan, na China, mostrou que filhotes de camundongos cujos pais eram mais propensos a usar cocaína também tinham uma maior propensão ao vício – algo que ocorre em cerca de 20% dos casos humanos.

Mas genética não é o único ponto. Fatores sociais, emocionais e de ambiente (onde a pessoa cresceu/foi criada) também influenciam, apesar de nenhum deles ser determinante. No entanto, o psicólogo Inti Raymi D’Avila ressalta que não há um “perfil único” de dependente. “Não podemos traçar estereótipos ou uma predisposição específica”, afirma.

Ele cita o exemplo de um paciente que, após perder o emprego e se divorciar, passou a usar drogas farmacológicas no trabalho, em um hospital. Experimentou em um plantão, repetiu outras vezes e acabou se viciando em cocaína. “Sua situação se agravou devido a um estado emocional de desequilíbrio, desesperança e depressão”, comenta Inti Raymi.

Vício no amor

Em alguns casos, a dependência começa na tristeza. Em outros na euforia. E há também aqueles que começam na paixão. É o que a psiquiatria chama de amor patológico. Quando a terapeuta conjugal Robin Norwood lançou a obra Mulheres que Amam Demais, pouco se falava sobre o assunto. Hoje, entendemos que o amor pode se tornar patológico quando a pessoa vive exclusivamente em função do objeto de seu afeto, como um dependente, e há vários centros de tratamento especializamos.

Em São Paulo, o Hospital das Clínicas oferece tratamento para dependentes de amor e ciúmes excessivos por meio do PRO-AMITI, que também atende pessoas com vício em jogos, sexo e outros comportamentos impulsivos. O Grupo MADA (Mulheres Que Amam Demais Anônimas) é uma irmandade baseada no livro de Norwood que adapta os 12 passos dos Alcoólicos Anônimos para mulheres que buscam se recuperar de relacionamentos destrutivos.

Para Henrique, o mecanismo desses grupos anônimos é eficiente por diferentes motivos. Primeiro porque introduz o dependente a um estilo de vida que evita a exposição àquilo que são viciados e incentivam a reconstrução pessoal, além de auxiliar outras pessoas que sofrem com o vício.  “Não são todos que se beneficiam desses grupos, mas eles oferecem um excelente ponto de partida para quem não pode bancar um tratamento pago”, afirma o psiquiatra.

Como identificar o vício?

Henrique diz que o diagnóstico do vício pode ser feito pela auto-observação, mas os familiares, amigos e pessoas próximas conseguem identificar os sinais com maior facilidade. Para isso, avalie se houve aumento do consumo da substância ou repetição de comportamentos, se houve diminuição do tempo em que essa pessoa ficou sóbria e, por último, se ela continua repetindo a ação mesmo que o ato provoque danos e perdas significativas em seu cotidiano. 

Além disso, é comum que pessoas dependentes migrem de um vício para outro devido a mudanças em seus sistemas de gratificação cerebral. “Pedir ajuda é fundamental”, acrescenta o médico.  “Embora não existam medicamentos específicos, há abordagens terapêuticas eficazes para tratar dependências.”

Por fim, é preciso cautela com a banalização do tema. Embora vivamos tempos de busca constante por estímulos, o diagnóstico de vício deve ser feito por um profissional. Há uma diferença entre comportamento excessivo e comportamento destrutivo. Esse é um tema sério, que não pode ser tratado de forma leviana por vídeos de TikTok ou coaches de autoajuda.

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